Ali pela página 34 do livro "Mangue", nas estrofes do poema "Gravador", Moisés Alves escancara: "Acusamos a vida pelo excesso/ de pequenos milagres/não de enigmas. A vida está aí, pessoa,/ solta nas praças como um vira-lata./ Cuido de um amor vira-lata/como se ele durasse apenas/ um dia./ Sambei./ Fui sambado./ Está tudo intensivamente pago./ Não largo do vício de ter fé/ no-que-vem e no-que-vai./ O que vem e vai é tão bonito".
Ao longo da semana que crava seu ponto final no calendário de 2023 amanhã, Moisés escancarou abrigos, abraços, sussurros e berros numa outra margem poética, a do cinema. Um cinema muito peculiar, dos bons, feito na guerrilha do "câmera na mão, ideia na cabeça", pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também poeta e realizador Alberto Pucheu.
A cada aula da disciplina "O Apagamento do Eu e Modos do Autobiográfico em Certa Poesia Contemporânea", na pós-graduação de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras do Fundão, ele (em duo com Maurício Chamarelli, um bamba em Foucault que leciona na Uerj) disseca a bisturi as subjetividades e as brasilidades que afloram de Moisés, de Tatiana Pequeno, de Bruna Mitrano e doutras vozes autorais às margens dos centros mais endinheirados das grandes metrópoles do país. Muitas dessas vozes são eternizadas por Pucheu em documentários (ensaios.doc seria o termo mais correto pro que ele faz). Alguns deles podem ser vistos no http://www.albertopucheu.com.br/.
A pedido do Correio da Manhã, lá da Bahia, ele arrancou reflexões de Moisés sobre a cruza de verso e audiovisual. Seu entrevistado (por ora, pois, logo, logo, na diegese entusiasmada por Tarkovsky e Terrence Malick de Pucheu, ele vira personagem), o autor do já citado "Mangue" (da Martelo Casa Editorial) e do belo "coisas que fiz e ninguém notou, mas mudaram tudo" (ed. Circuito) diz:
"A relação que eu vejo entre poesia e cinema, como eu tento fazer, é que cada poema seja uma espécie não necessariamente de filme, mas de um microfilme em que o poema precisa colocar alguma coisa em movimento, uma sensação, um afeto, um pensamento", explica Moisés. "Seja lá o que for, eu acredito que o poema tem de estar se movendo. Não sei nem se a relação é com o cinema enquanto mídia, como espaço de criação, mas com uma espécie de 'cinemar'".
Pucheu radiografa essas ideias de modo a transformá-las numa investigação cinematográfica do lugar da poesia hoje. Silenciosamente, o educador, egresso da Filosofia, encontrável nas prateleiras de boas livrarias via "Um Mergulho e Seu Avesso" (Editora Impressões de Minas) e "Para Que Poetas Em Tempos De Terrorismos?" (Azougue), vem moldando uma autoralidade de realizador nas telonas. "Tem um novo modo de crítica poética sendo feito por mim, pelo e com o audiovisual. Gostaria que esses filmes fossem entendidos como filmes poéticos e filmes críticos interventivos, em busca de fazer a poesia chegar a mais pessoas", almeja Pucheu.
Na URL que toma seu nome emprestado, internautas se comovem ao ouvir André Luiz Pinto, expoente do lirismo, falando da solidão a dois em "Para Gullar e Aline" e "Ainda; para Aline in memoriam". Comove-se ainda com o .doc feito por Pucheu e Danielle Magalhães (autora da safira chamada "Vingar") com o bardo paraense Vicente Franz Cecim (1946-2021).
"Venho fazendo filmes não profissionais, amadores, praticamente sem recursos. Foi com minha verba de pesquisador da Faperj, com projetos de pesquisa acadêmicos em poesia contemporânea que, anos atrás, comprei uma Canon 6D, um gravador e um tripé; e é com a mesma verba dos projetos em poesia que, quando preciso, pago passagens e diárias para fazer filmes", diz Pucheu, explicando sua estratégia bélica. "É a única verba que uso. Mínima, irrisória, quase nada. Esses meus filmes são feitos como maneira de, primeiramente, guardar, na memória, em arquivo, poetas lendo seus poemas e falando a partir deles, mas também como modo de dar mais visibilidade a certa poesia que vem sendo feita hoje e de intervir um pouco mais com a poesia na cena poética, na cena crítica e mesmo, se possível, fora delas. Eu poderia dizer que são documentários feitos por alguém que, amando o cinema, não é cineasta, alguém que não tem técnica de filmagem, nem técnica de gravação sonora, nem técnica de programas de edição, mas documentários feitos por alguém que é poeta, crítico de poesia e professor de Teoria Literária, tendo, ao longo da vida, uma dedicação muito intensa à poesia. Mesmo com o não conhecimento técnico, me aventuro a filmar amadoramente, arrisco-me a usar um gravador amadoramente, a montar amadoramente nos programas de edição. Gosto disso, é preciso dizer, desse amadorismo, desse não domínio técnico".
Citando Platão numa sala da Letras da UFRJ, Pucheu dá peteleco no "Troia" (2004), do alemão Wolfgang Peterson (1941-2022) ao mesmo tempo em que tece loas para o transcendentalismo de "Uma Vida Oculta" (2019), imersão de Malick na II Guerra.
"Como meu respeito e minha admiração pelo cinema são imensos, sei dos limites muito estreitos do que faço, não me considerando, obviamente, cineasta, mas um poeta-crítico, utilizando-me do audiovisual como modo de expansão da poesia, como maneira de uma intervenção crítico-poética ou poético-crítica. Talvez, fosse mais apropriado falar de uma intervenção crítico-poético-política, já que a política está fortemente presente na própria escolha que venho fazendo de poetas e poemas a serem filmados", explica Pucheu. "Nesse sentido, entendo os filmes como filmes de poeta e como filmes de crítico de poesia em busca de uma intervenção poética, crítica e política. Vou descobrindo esse modo de lidar poética e criticamente com a poesia através do cinema".