Mónica Ojeda: 'Medo me interessa mais que o terror'
Escritora equatoriana leva suas bruxas à 21ª edição da Flip
Mónica Ojeda, autora de frases como "não me lembro de um único dia em que não abri meu corpo para ver o sangue jorrando como água fresca", não lê muita coisa do gênero do horror. Nem acha que precisa para escrever livros como "Mandíbula", que começa com uma aluna sequestrada pela professora de literatura de um colégio de elite, ou "Voladoras", volume de contos que lança na 21ª Flip.
"Encontrei o horror sobretudo no cotidiano: em parques, casas, jardins, cidades, desejos e dores das pessoas", justifica a escritora equatoriana na proa da nova literatura latino-americana, com um rótulo ímpar para sua prosa: gótica andina.
Sua nova obra carrega no título uma antiga lenda local sobre as "voladoras" (voadoras, em português). São, basicamente, mulheres que à noite podem se empoderar no mais literal dos sentidos: ganham o dom de sair voando "de braços abertos e as axilas jorrando mel", deixando um rastro de lágrimas e cheiro de vulva e sândalo.
As histórias que planam por seus textos vêm tanto de fábulas míticas quanto de casos reais que ensanguentam o noticiário. "Escrevi 'Cabeça Voadora' enquanto pesquisava sobre as 'umas' andinas, bruxas capazes de separar a cabeça do corpo, e lia ao mesmo tempo uma reportagem sobre uma menina que havia sido decapitada no Equador", conta.
A narradora deste conto diz que a ela basta fechar os olhos para ver o membro decepado "voar para dentro do quintal e dar dois rebotes no chão". Alegorias sobre perder a cabeça e entrar em contato com um estado mais primitivo passeiam por uma obra indissociável de temas comuns a mulheres de todo o continente. Violência doméstica, aborto, abuso infantil, sexo - está tudo lá.
Chagas sociais
Várias passagens de "Voladoras" esbugalham essa realidade opressora. Não tem como desinfetar essas chagas sociais com a luminosidade de uma literatura mansa. "Escrever é dançar no escuro e, nesse sentido, tendo a dirigir-me para a sombra, para a noite", diz Ojeda. "Parece-me que a revelação só pode existir no meio das trevas. Desejo e amor ocorrem na escuridão."
Se nos sentimos tragados pelo que nos apavora, como quem não consegue desviar o olhar de um acidente na estrada, os motivos lhe soam óbvios. Todos nós tememos, sem exceção.
"O medo é uma emoção central nas nossas vidas", ela afirma. "Tememos porque somos frágeis, porque amamos e porque vamos morrer. O medo na vida real é paralisante, mas um livro ou filme de terror permite que nos distanciemos um pouco daquilo que nos aterroriza e pensar sobre isso a partir de uma perspectiva privilegiada."
Sua dose de privilégio veio com uma mudança para a espanhola Madri, tem coisa de cinco anos. Ojeda rememora sua infância e juventude como abastada, por nunca lhe faltar comida, educação e família. Mas adolescer também foi uma experiência de privação, por sentir medo o tempo todo.
Sua cidade natal, Guayaquil, a segunda maior do país, é retratada numa matéria recente da Associated Press como "epicentro da violência" equatoriana. A reportagem parte do relato de uma universitária que, perseguida por um motociclista, escapou do oitavo assalto em três anos, numa área superpovoada por matadores profissionais, sequestradores, ladrões e cartéis de drogas.
"Todos nós crescemos com histórias de terror ao nosso redor, algumas fantasiosas e outras reais. No meu caso, tive os dois. Guayaquil está cheia de relatos assim. É uma cidade violenta e imaginativa, e também meu monstro pessoal. Por isso tive que sair de lá."
Das muitas narrativas que assombraram seus primeiros anos está a da "llorona". Essa chorona, reza uma lenda ancestral da cultura hispanoamericana, é o fantasma de uma mulher que afogou os filhos e se arrependeu. Seu pranto noturno assolaria povoados até hoje.
Data do século 16 o primeiro registro textual dessa história que apavorava a menina Mónica nos anos 1990. Um frade franciscano reproduziu no papel o que a tradição oral foi passando ao longo dos anos: uma senhora de trajes palacianos que à noite "gritava e berrava no ar".
Ojeda se declara ateia, mas é como diz aquele dito popular: "não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem". Seu fascínio por seres sobrenaturais que habitam o imaginário popular, e também pelos de carne e osso que praticam bestialidades, a aproxima "num nível poético" do universo religioso, diz.
"Encantam-me os textos sagrados. De certa forma, a religião é uma maneira de dar linguagem às nossas esperanças e aos terrores pessoais, de superar o medo."
Exotismo e rótulos
O domínio literário garantiu projeção internacional à autora. Ela sabe, contudo, que o reconhecimento traz na garupa um velho hábito dos países que gostam de se chamar de primeiro mundo -classificar de exótica a literatura que bebe em outras referências culturais.
"O exotismo existe porque não há uma visão aprofundada, mas simplista em torno do que escrevemos, mais em busca de entretenimento do que de pensamento. O bom é que o que se escreve na América Latina supera essas limitações da perspectiva europeia."
Não a aborrece o selo que tanto se impinge à sua escrita, o tal "gótico andino". Não é o mesmo que dizer que se submeta à rotulagem. "Sei que meus livros até agora trataram do medo e da violência, mas não sei sobre o que tratarão meus próximos, e gosto que seja assim."
Até porque o terror nem sempre se introduz com esse nome tão explícito. Dos escritores brasileiros que mais aprecia, Mónica Ojeda cita Rubem Fonseca (1925-2020) e Clarice Lispector (1920-1977), ambos pródigos em construir atmosferas petrificantes para seus protagonistas e coadjuvantes.
"Há um horror que seus personagens por vezes vivenciam no nível psicológico. Penso na narradora de "A Paixão Segundo G.H." [de Lispector] e no terror, que também é atração, que uma barata produz nela. Honestamente, estou mais interessada na emoção do medo do que no gênero em si. O medo ultrapassa o gênero: você pode encontrá-lo em quase toda a literatura."