Uma celebridade esquecida
Cravista Marcelo Fagerlande estreia no segmento biográfico dando voz à socialite e cantora lírica Bebê Castro e Lima, musa dos anos 1900
Consagrado no mundo da música, o cravista Marcelo Fagerlande é autor de alguns títulos referentes a seu universo profissional. Ao longo da pandemia, entre aulas online para seus alunos da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele começou um projeto novo: escrever a biografia de uma socialite carioca, Violeta Lima e Castro, mais conhecida como Bebê, que almejou uma carreira como cantora lírica. Admirada pela beleza, Bebê era uma celebridade na primeira metade do século XX, personagem frequente do noticiário da época, citada em crônicas por João do Rio.
Nessa primeira incursão fora de sua área de conhecimento, o músico recebeu elogios do mais destacado escritor brasileiro dedicado a levantar personagens e memórias do passado, Ruy Castro, que fez uma apresentação para o livro. O resgate da jovem figurinha fácil das colunas sociais dos jornais da virada do século XX ultrapassa a curiosidade a respeito da moça, conta Fagerlande, que sempre ouviu falar de Bebê dentro da família, pois a amizade vinha da geração dos pais da socialite. Sem herdeiros, ela deixou seus bens para instituições diversas, empregados e amigos, incluindo a família da bisavó materna do músico.
"Os pais de Bebê eram padrinhos de algumas de minhas tias-bisavós. Aos meus avós, ela legou um automóvel Cadillac, imóveis e joias, entre eles um anel de brilhantes, vendido décadas mais tarde e revertido no cravo que trouxe da Alemanha, quando terminei minha formação, nos anos 1980", lembra Marcelo Fagerlande, que fala sobre a protagonista de "Muito Além dos Salões - Bebê Lima e Castro, Mmusa do Rio em 1900" (Editora Sete Letras, R$ 55) nesta entrevista ao Correio da Manhã.
Por que uma figura como Bebê foi esquecida, quando, no mesmo período, socialites no Ocidente eram reverenciadas e passaram para a história, como grandes anfitriãs e patronesses das artes?
Marcelo Fagerlande - Bebê não queria ser lembrada como patronesse, mas como cantora lírica. Se pensarmos que as cantoras líricas de sua época dificilmente são lembradas hoje em dia, podemos entender o que aconteceu com ela. Suas atividades artísticas em âmbito beneficente aconteceram na décadas de 1910. Ao estourar a guerra de 1914, Bebê voltou da Europa e criou famosos espetáculos beneficentes no Theatro Phenix, Municipal e em outras salas. Já durante a Segunda Guerra Mundial, não subia mais aos palcos. A longa lista dos beneficiados em seu testamento não contempla apenas os amigos ou empregados. Deixou imóveis a instituições de caridade dos anos 1960 - como a Policlínica de Botafogo, o Instituto do Câncer, Fundação Ataulpho de Paiva, Irmandade Santa Inês, na Gávea, Igreja da Matriz, em Botafogo, entre outras.
Bebê pode ser definida como alguém à procura do reconhecimento social, desafiadora, anticonvencional?
Bebê era um 'talento polimorfo", ou, "a fascinação em pessoa", como escreveu João do Rio. Talentosa, linda, exuberante, conquistava a todos com sua personalidade. O reconhecimento social ela tinha, o que buscava era o reconhecimento artístico. A glória para ela foi ter sido ovacionada no Municipal em 1925, após os estudos na Itália, e a inclusão no livro de Vincenzo Cernicchiaro sobre a música no Brasil, em 1926. Bebê não estava alheia ao que acontecia - participou, por exemplo, cantando na Missa de Réquiem para José do Patrocínio, o jornalista abolicionista, em 1905. Teve atitude política sobretudo em relação à opressão sofrida pelas mulheres: separou-se do marido e continuou sendo admitida nos círculos que normalmente a teriam excluído, apresentou uma conferência pública em que criticou o comportamento masculino e deu seu grito de liberdade ao partir para a Itália, para se formar como cantora lírica - após a morte do pai, contrário a uma atuação profissional da filha.
O que significava buscar uma carreira artística na época em que mulheres de alta sociedade não trabalhavam?
Era uma necessidade. Não se contentava em ser apenas bela, como também identificou João do Rio. Ela compensou o casamento malsucedido com as atividades artísticas - subir no palco foi um substituto do amor, ao menos aparentemente... Não teve filhos, pois o casamento foi muito curto, e, após a separação, ela ficou aprisionada pelas leis da época, pois a mulher não podia se casar novamente, de acordo com o código civil. Não pôde refazer sua vida amorosa, ao menos oficialmente.
Como foi conhecer a Bebê histórica?
Jamais poderia imaginar que a vida de Bebê tivesse sido tão rica. Fiquei surpreso com suas atividades artísticas e com a repercussão de sua presença na vida social e cultural do Rio naquele período. Muitos de seus amigos viraram nomes de ruas no Rio. Eu me diverti e me emocionei muito ao escrever sobre ela, e espero que sua biografia possa colaborar com a compreensão sobre sua época na então capital. Se o leitor se divertir, se emocionar, e ainda, como disse Ruy Castro, se apaixonar por Bebê, estarei contente!