Em vários momentos do livro "Casa de Alvenaria", Carolina Maria de Jesus manifesta o desejo de ser reconhecida como escritora de ficção e discorre sobre projetos que está desenvolvendo. O primeiro passo para aquilo que ela almejava naquela época acontece só agora com o lançamento do romance inédito "O Escravo" pela Companhia das Letras.
A face mais lembrada da autora é a de memorialista. Foi com "Quarto de Despejo", de 1960, que ela ganhou notoriedade e se projetou como um dos maiores nomes da literatura brasileira, tendo sido traduzida para 16 idiomas.
Mas só esse lado de Carolina foi valorizado pelos editores de então. Ela se aventurou como poeta, contista, dramaturga, cronista e romancista, mas foi desincentivada a escrever qualquer coisa que não fosse diário. "Esse projeto de Carolina foi deturpado pelos primeiros editores, que só se interessavam pelos diários", afirma Amanda Crispim, pesquisadora que compõe o conselho responsável por publicar os inéditos da autora, formado majoritariamente por mulheres negras. A coordenação é da escritora Conceição Evaristo e de Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina.
A primeira parte desse projeto, cujos direitos estão com a Companhia das Letras, foi o relançamento de originais de "Casa de Alvenaria", com trechos até então desconhecidos que mostravam a relação complexa de Carolina com Audálio Dantas, jornalista que a revelou. Os dois se conheceram em 1958, quando ele fazia uma reportagem sobre a favela do Canindé, em São Paulo, e ela catava papel nas ruas para sustentar a família.
O segundo passo do projeto é o lançamento deste "O Escravo". O livro conta a história dos primos Rosa e Renato, dois apaixonados que seguem caminhos diferentes por pressões da família e adversidades sociais. "Ele fala de um amor impossível e de como o dinheiro pode influenciar as escolhas e os destinos das pessoas", descreve Crispim. O livro aborda assuntos que Carolina já tratava em suas obras não ficcionais, mas a partir de um enredo todo inventado.
Na obra, segundo Vera Eunice, Carolina vai mudando a trama e o contexto de propósito, de modo que quando o leitor entende a história, ela toma outro rumo.
É incerta a época exata em que o livro foi escrito. A pesquisadora afirma que ele passou por reescritas e existiram outras versões - o texto editado agora foi retirado de manuscritos do Museu Histórico Nacional de Sacramento, onde estão também lembranças de viagens, fotos, recortes de jornais, anotações e cadernos de material inédito da autora.
Na edição publicada, não foram feitas correções ortográficas ou adequações à norma padrão da língua portuguesa. Há erros mantidos deliberadamente, com a mínima intervenção possível. Por outro lado, Carolina explora palavras eruditas na obra, algumas até de difícil entendimento para o conselho. "Não são coisas que ela procurava no dicionário, ela falava assim dentro de casa", afirma a filha, que se lembra da autora chamando a ela e seus irmãos de "famélicos" - palavra que se refere a quem está sempre com fome.
Vera Eunice, que hoje é professora, começou a ajudar a mãe a corrigir seus textos aos dez anos e conta que, ao ler "O Escravo" pela primeira vez, chorou ao ver como a mãe lutava para acertar o português. "Minha mãe tinha ganas de aprender e não escrevia na norma padrão da língua. Tinha uma cultura para falar, escrevia palavras distintas, mas não escrevia dentro da regra."
Conceição Evaristo defende que Carolina escreve em "pretuguês", o português influenciado pela cultura negra e africana. A opção de não mexer na linguagem da autora busca fazer o leitor ter acesso a sua obra na versão mais autêntica possível.
Tom Farias, autor da biografia mais completa de Carolina, demonstrou surpresa ao saber que "O Escravo" seria lançado. "As pessoas ainda não têm uma compreensão dela como romancista. Não só no âmbito da obra literária, mas da sua vida."
"O Escravo", segundo as pesquisadoras do conselho editorial, era o romance que estava mais bem acabado e com texto legível nos arquivos, ou seja, mais fácil de ser publicado.
Não é, contudo, a primeira ficção de Carolina a chegar ao público na história. Em 1963, foi publicado o romance "Pedaços da Fome", obra que a autora havia intitulado como "A Felizarda"- a mudança a deixou zangada. Para Vera Eunice, queriam retratar sua mãe apenas como "a escritora da favela". A Companhia das Letras queria relançar o livro com o nome original, mas a qualidade e acessibilidade do manuscrito atrasaram a publicação.
Farias afirma crer que o livro que Carolina mais gostaria que fosse publicado seria "Dr. Silvio", que se passa em São Paulo e conta a história de um casal. Há ainda os romances "Dr. Fausto", "Rita" e "O Diário de Marta" ou "Mulher Diabólica". Seus livros trazem sempre "histórias tristes, de enganação e de pobreza", segundo o biógrafo. O amor está sempre em um lugar de desilusão. "Isso vem de uma origem de não pertencimento, de só servir para ser mão de obra".
Vera Eunice segue tentando atender ao pedido que sua mãe fez, em uma carta deixada depois de morrer, para reunir todos os seus inéditos. Mas leva tempo e dá trabalho, seja pela falta de data nos documentos, que passaram por reescritas constantes, ou a dificuldade de acesso a cadernos que estão em acervos privados, como o de Audálio Dantas.
A filha diz que as letras "eram como borboletas que flutuavam na cabeça" de Carolina. Não é à toa que ela vivia com um lápis no bolso para que, quando a inspiração viesse, escrevesse no primeiro pedaço de papel que encontrasse. Por isso há escritos da autora espalhados por arquivos públicos e privados. O desejo de Vera Eunice é criar um centro cultural para guardar a memória da escritora na cidade mineira de Sacramento, onde ela nasceu. Diz ter recebido apoio de Margareth Menezes, ministra da Cultura, e está elaborando um projeto para captação via Lei Rouanet. "O que mais queremos fazer é colocar a obra de Carolina dentro da historiografia literária brasileira,um lugar de destaque e de respeito", afirma Crispim.