ENTREVISTA / HENRIQUE RODRIGUES, ESCRITOR | 'Temos umasociedade arcaica em muitos aspectos'

Por

Henrique Rodrigues

Semifinalista do Prêmio Jabuti 2023, o escritor carioca Henrique Rodrigues acaba de lançar "Áurea" (Estrela Cultural), a partir de episódios da vida de sua tia, também batizada com o nome da Lei que, assinada em 13 de maio de 1888, pôs fim à escravidão no Brasil. No romance, Áurea é uma mulher beirando os 60 anos que, ao receber o diploma escolar, rebobina as suas vivências desde a infância e toda a luta que forjou para sobreviver em meio ao racismo, ao machismo e à pobreza.

A fagulha para escrever o romance foi uma conversa. "Quando minha mãe contou que a tia Áurea temia entrar em shoppings e lojas de departamentos por achar que seria acusada de estar roubando", conta Henrique em conversa com o Correio da Manhã.

Qual fagulha fez você escrever "Áurea"?

Henrique Rodrigues - Quando minha mãe contou que a tia Áurea temia entrar em shoppings e lojas de departamentos por achar que seria acusada de estar roubando aquilo me deu uma tristeza - e um clique.

A história é inspirada na sua tia. A vida dela foi sofrida assim, nessa medida, ou você trouxe outras histórias ouvidas por aí para criar a personagem?

A vida dela foi mais ou menos desse jeito que está no livro. Ouvi outras histórias parecidas, inclusive de mulheres que tiveram que começar a trabalhar como empregadas ainda mais cedo, aos 8 ou 9 anos.

Você toca em questões como estupro, abandono parental, preconceito por ser uma mulher a criar dois filhos sozinha. Como foi para você escrever no feminino?

Foi uma relação de alteridade e empatia. Vestir essa perspectiva da narradora foi bem difícil em vários momentos. Parava a escrita chorando muito, mesmo porque sei que estava falando de algo tão comum a tantas mulheres no Brasil.

O livro seria também uma denúncia das agressões que sofrem as domésticas pretas no nosso Brasil?

Temos uma sociedade arcaica em muitos aspectos. A agressão a mulheres parece ter sido, até há bem pouco tempo, algo plenamente aceitável, especialmente as pretas. Precisamos mostrar, escrever e gritar que se trata de um absurdo.

A trama inclui os revezes que o país sofreu nos governos Collor e FHC, ecoando Lula. Fala sobre isso?

Na verdade, a trama pega desde a ditadura, recortando como todas as mudanças de governos ecoaram nas pessoas mais pobres, pois o que se acompanhou na mídia foi sempre na perspectiva de uma classe média. Naturalmente há um alento com a recente melhora de condições de vida dos mais pobres deve ser celebrada, sobretudo no acesso à educação dos governos Lula.

Eliana Alves Cruz e Kiusam de Oliveira, duas importantes autoras negras, elogiaram "Áurea" em frases usadas na contracapa. O que você mais gosta nesse romance?

Sou muito admirador dessas duas autoras. Aprendo a cada vez que as leio ou quando conversamos sobre os bastidores da literatura. De certa forma, elas têm me ensinado a observar com mais cuidado a situação das mulheres pretas no Brasil. Então, o que mais gosto é justamente prestar essa homenagem a todas elas.

Vamos falar sobre a crueldade da patroa que, apesar de atuar como professora, não permitia que Áurea folheasse os livros da sua biblioteca?

É uma crueldade que existe muito ainda. Talvez o campo simbólico da biblioteca da personagem tenha refletido um medo que as elites têm de que os subalternos acessem a educação e o conhecimento, que são as reais chaves para a liberdade do povo negro.

Você é filho de uma empregada doméstica. O que mais tem da sua história no livro?

Como se costuma dizer, tudo é biografia e nada é biografia. Mas posso citar uma cena que minha mãe sempre me contou e que ainda me corta o coração: no pouco que ela conseguiu estudar na infância, o caderninho e o lápis eram levados para a escola num saco de arroz…

A pobreza pode ser motor de todo o tipo de destino?

A pobreza é um ponto de partida, não de chegada. Já perdi parentes para o tráfico, por exemplo. É um problema complexo e sedutor para jovens a quem não são dadas as oportunidades a que eles têm direito. Pior que a pobreza é quando a gente entende toda a engenharia social da manutenção da pobreza. Ela é que deve ser atacada na sua raiz.

Por que você escreveu este livro?

Escrevi porque gosto de trazer a voz dos chamados invisíveis sociais para a literatura. Sou um escritor de origem pobre, e pelo que tenho acompanhado no meu trabalho como gestor cultural, as grandes histórias do nosso tempo serão contadas por uma parcela da população que, pela primeira vez na história, tem acesso aos meios de expressão. Seja nos saraus ou na literatura impressa, é hora de os filhos das empregadas deixarem suas mães orgulhosas contando as nossas histórias para o mundo!