Conceição Evaristo: 'Quantas coisas não aprendemos com as mulheres que nos geraram, nossas antecessoras?'
Autora revê a Macabéa de Clarice Lispector como mulher potente e silenciada
"Será que ela é realmente tão amorfa ou há uma potência ali dentro que não foi vista, que ela não pôde dizer?" O questionamento feito por Conceição Evaristo deu origem ao livro "Macabéa: Flor de Mulungu", lançado em novembro na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Conceição reimagina a personagem principal do romance "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector, como uma pessoa quieta, mas muito inteligente, "capaz de fingir de morta para enganar coveiro", diz a narradora em um trecho do conto.
A autora dialoga apenas com o momento em que a personagem original atinge o auge da sua trajetória: a sua morte. No entanto, Conceição se recusa a aceitar que Macabéa é apenas uma mulher frágil e de poucas palavras descrita por Rodrigo, narrador-personagem do livro original de 1977.
"Quantas coisas não aprendemos com as mulheres que nos geraram, nossas antecessoras? Muitas ensinaram no silêncio, numa aparente passividade, e depois descobrimos que esse silêncio era uma tática de enfrentamento para que pudéssemos estar aqui hoje".
No romance da década de 1970, Macabéa é uma mulher nordestina, órfã de pai e mãe, que vive em uma pensão no Rio. Tímida e de poucas palavras, ela é constantemente diminuída pelos homens ao seu redor, seu chefe, seu namorado e pelo próprio narrador da história. Seu maior momento, a hora em que brilha, é quando morre atropelada.
Para a autora de "Ponciá Vicêncio", a protagonista da década de 1970 estava em formação. "Essas Macabéas caladas, silenciadas, como as mulheres negras, as mulheres indígenas, hoje têm projetado suas vozes", afirma. Mas isso não foi algo conquistado em pouco tempo.
Ela relembra a própria trajetória como escritora que, mesmo tendo começado há mais de três décadas, só ganhou projeção como um dos grandes nomes da literatura brasileira nos últimos anos. Isso, diz, se deve a um movimento contínuo de outras mulheres que foram abrindo caminho para uma juventude mais ativa.
A autora afirma que a mulher-flor que descreve é plácida e inofensiva só na aparência. Ela é, na verdade, silenciada por homens que insistem em vê-la como frágil. É aí que as personagens de Clarice e Conceição se aproximam.
"A Flor de Mulungu poderia ser a irmã gêmea da Macabéa de Clarice", diz. As duas mulheres nascem de um mesmo lugar, compartilham uma história de opressão, mas têm as vidas narradas de pontos de vista diferentes.
Conceição diz admirar muito o trabalho de Clarice. Ela afirma ver Macabéa como uma personagem inspiradora, angustiante e complexa, pois é escrita por uma mulher, mas retratada pelos olhos de um narrador homem e impregnada do machismo da época.
"Macabéa: Flor de Mulungu" foi publicado pela primeira vez em 2012 dentro de uma antologia da editora Oficina Raquel. Conceição e outros 11 autores foram convidados para homenagear Clarice repensando alguma de suas histórias ou personagens. Agora, Conceição relança a história em uma versão autônoma e ilustrada.
Segundo a autora, o conto pode ser lido como uma epifania da narradora que imagina em Béa a representação de uma dor comum a todas as mulheres, principalmente negras, que estão sempre encarando a morte, física ou simbólica, e lutando para sobreviver.
Morte e vida
Morte e vida também estão sempre em diálogo no texto. A Macabéa escrita por Conceição é parteira. E, no momento de sua morte, ela lembra as pessoas que trouxe à vida.
A escolha de fazer de Béa uma "flor de mulungu", como diz o título, não foi por acaso, afirma a autora. A infusão da planta tem propriedades calmantes e sedativas, se tomada em grande quantidade, e um de seus nomes populares é "amansa senhor".
"Ela não poderia ser uma florzinha, não poderia mais ser tratada no diminutivo pela potência que queria dar para essa personagem", explica Conceição. Ela se refere à passagem do romance de Clarice Lispector em que Macabéa é chamada diversas vezes de "florzinha", pela cartomante que visita momentos antes morrer.
A primeira vez que a autora viu um pé de mulungu florido foi numa fazenda colonial transformada em ponto turístico. A árvore estava no local onde teria sido a senzala, já demolida.
Ao descobrir o nome da planta e seu potencial sedativo, Conceição Evaristo conta ter começado a imaginar milhares de histórias que poderiam envolver aquele lugar e aquela árvore. A autora revela ainda que a flor de mulungu deve aparecer ainda em um próximo romance seu.