Eu queria sair por aí, ir embora, tomar um sorvete e ir para uma casa. Sem nenhum luxo que não fosse um ar condicionado. Eu queria dar uma volta para ver o mar e a natureza, como se fosse me despedir deles. E caminhar longamente por uma rua com muitas árvores - com pequenos micos, quase nenhum carro, quase nenhuma pessoa e adoráveis cachorros nas varandas das casa. Andar sozinho, do jeito que tem sido nessa terra de humilhações, agressões e desumanidade. Eu queria sair por aí e deixar o mundo para trás, com sua covardia e opressão. Quem sabe poder pegar o primeiro avião para a terra mais distante, sem prazos nem rumos, sem planos, quem sabe?
Eu queria andar num lugar onde não me sentisse tão estrangeiro, tão fora de propósito, tão desfocado do que chamam de senso comum. Numa rua de um bairro simples e com pouca gente, sem nenhuma sofisticação mas um mínimo de conforto. Olhando os muros, as arquiteturas, as janelas de serenidade.
Queria também reencontrar a maioria dos meus poucos amigos, mas acontece que eles estão mortos, muito mortos, e nunca me deram qualquer sinal de espírito. Então esse querer se torna inútil pelas condições adversas. Eu me lembro deles, rio e choro com eles quase sempre, passo as páginas do livro dos dias sem que eles apareçam numa linha sequer. Só estão em minha memória e, quando ela morrer, tudo será inútil.
Nada de lojas, mercados, produtos, roupas, artigos de vitrines, nada disso. Apenas caminhar numa rua bem arborizada e, com sorte, encontrar um senhor que venda refresco de laranja ou limão na calçada. É o que basta. Quase todo o resto é desimportante.
Era apenas caminhar num dia calmo, de paz, sabendo que poderia chegar tranquilo em casa, tomar um banho, descansar, rir e depois mergulhar numa pacífica noite de sono. Depois acordar e ter uma boa manhã, com café, sem medos ou dores, sem a menor chance de sofrimento. Era apenas um passeio descompromissado e simples, não a gota d'água.
Pode parecer uma bobagem, mas esse simples desejo é impossível para centenas de milhões de pessoas, dentre as quais me incluo. Sou apenas mais um. A formiguinha perdida na grande serra, prestes a ser abatida porque na modernidade a natureza é inútil diante de grandes corporações construtivas.
Não se trata de negar as conquistas admiráveis da ciência, longe disso, mas temos um mundo moderno para uma ninharia de gente. A maior parte está muito longe disso, longe de uma boa noite de sono, de uma casa com algum conforto, de um bom almoço. Neste exato momento, a alguns quilômetros daqui pessoas perderam as poucas coisas que conseguiram no trabalho de uma vida inteira - e agora estão com água até o peito. Nunca puderam passear direito porque sair sempre significou levar duas ou três horas até o trabalho, passar o dia e voltar para casa não para dormir, mas desmaiar de cansaço.
Eu queria mesmo era a paz. Infelizmente ela é impossível para qualquer pessoa de senso gregário, ainda que este item esteja a caminho da extinção. Hora de fechar a janela, a porta, encerrar o expediente e aguardar mais um dia de pena. A cumprir.