Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Oswaldo Caldeira: 'Sempre tive uma montanha em frente aos lugares onde morei'

Realizador de longas como 'O Grande Mentecapto' e 'Tiradentes', Oswaldo Caldeira aposta na literatura com o romance 'Onde o Mar Começa' e faz um balanço da carreira | Foto: Ricardo Pinto e Silva/Divulgação

Centrado no fluxo memorial e nas vivências de um homem de cinema atrás de um sentido, "Onde o Mar Começa" é uma belíssima estreia de um veterano cineasta - o mineiro Oswaldo Caldeira - na prosa ficcional da literatura brasileira, com uma voltagem poética capaz de evocar um desabafo clássico de William Butler Yeats (1865-1939). Este dizia: "Penso onde começam e terminam as glórias dos homens: a minha foi ter os amigos que tive".

Com sessão de autógrafos e conversa com o público agendadas para esta quarta (dia 10), às 19h, no Estação NET Rio, o primeiro romance do realizador de "Tiradentes" (1999) é yeatsiano até a medula. Carrega um fluxo nostálgico que não nega a beleza do presente.

É o mesmo molde que Caldeira usava em suas aulas na Escola de Comunicação da UFRJ. Em sala, ele pregava a homilia da diversidade estética, indo de "Pulp Fiction" (1994) aos experimentos de Julio Bressane, sempre citando o sorriso de Elmer Gantry, personagem de Burt Lancaster (1913-1994) em "Entre Deus e o Pecado" (1960). Lecionando, ele abriu cabeças, formando documentaristas - que jamais esqueceram de suas lições sobre a arte do enquadramento - e críticos - gratos a ele pelos saberes ligados à dramaturgia de plano.

Em seu ofício de fazedor de filmes, Caldeira emplacou uma obra-prima, que hoje comemora 50 anos: "Passe Livre" (1974), sobre o jogador Afonsinho. Passou pelo "Globo Repórter", na TV, e fez ficções que ganham novas leituras (e novo prestígio) com o tempo, vide "O Bom Burguês" (1983) e "O Grande Mentecapto" (1989). "Histórias de Alice" (2016) é o longa-metragem mais recente de uma obra que ele esquadrinha na entrevista a seguir.

De que maneira o seu "Onde o Mar Começa" exorciza fantasmas de sua juventude e de sua maturidade e de que maneira esse romance tangencia suas leituras de formação? Escrevê-lo foi, em que medida, um processo terapêutico em relação ao que se viveu na pandemia?

Oswaldo Caldeira: Escrevi esse livro a vida inteira. Literalmente. Sempre me considerei um escritor. Na minha infância, meu pai tinha uma máquina de escrever na loja dele. Eu ia lá, ficava escrevendo meus escritos com um dedinho. Uma coisa mágica! Maravilhosa! O escrito assumia outra dimensão: chegava ao outro. Publicava-se! Cheguei a escrever dois romances que quase foram publicados. Chegaram a sair notas na imprensa. Além desses livros, escrevi anotações através dos tempos que chegaram a ter cerca de mil páginas em folhas soltas, cadernos. O computador permitiu que pudesse ordená-las e que fossem reduzidas até chegar na forma atual. São etapas da minha vida e o que nelas mais me marcou. Grande parte foi escrita com o verbo no presente. É a minha passagem pelo Nouveau Roman. Foram coisas escritas quando ocorreram. Já estava pronto bem antes da pandemia, cheguei a tentar negociar com algumas editoras e desisti. A novidade é publicar aos 80 anos o livro de ficção que tentei publicar a vida inteira.

Seu livro é regado de verbos no pretérito, seja o perfeito, o imperfeito ou o mais que perfeito. O que essas ações e ligações representam acerca de sua relação com o passado e como elas alinhavam um lugar de nostalgia e de melancolia na sua prosa?

Como mineiro e migrante, há sempre uma pontada de nostalgia de lembrança das montanhas. Fernando Brant, numa ocasião, disse a mim: "Mineiro é assim, tem de ter sempre uma montanha em frente ao lugar onde ele mora. De vez em quando ele senta ali e fica olhando aquela montanha só dele". Pensando bem, sempre tive uma montanha em frente aos lugares onde morei. O longe... o sempre... o mistério além das montanhas... Essa nostalgia do migrante está presente no Montaldo do filme "Os Boas Vidas"; no Jean-Paul Belmondo se lembrando de que seu pai tocava clarinete; no Luca de "Rocco e Seus Irmãos". Nessa visita constante a BH há sempre o "Encontro Marcado", de Fernando Sabino; a Itabira de Carlos Drummond de Andrade; e "O Amanuense Belmiro", de Ciro dos Anjos. No entanto, e isso fica bem nítido no romance, há uma ânsia de viajar no mais amplo senso, descobrir o que há além do confinamento das montanhas. Sou de uma família de migrantes. Meu avô veio da longínqua Galafura, em Trás os Montes, e meus parentes se espalharam pelo mundo. Meu pai nasceu no Pará, foi para Portugal e veio morar em Belo Horizonte. Falei disso no livro "Café Manduca". Somos uma família em constante movimento. Em devir. O Migrante está sempre em busca do novo, das descobertas de um mundo melhor. Do sonho. Dos mares nunca antes navegados. Onde o Mar começa... E se mais mar houver...

De que maneira a sua obra literária, a ensaística e a ficcional, deixa-se contagiar por suas vivências de cinema? Que filmes e que sets demarcam a sua escrita?

Não posso dizer que propriamente algum filme influenciou a minha escrita. Sendo a história de um cineasta há menção de momentos importantes de descoberta no percurso do personagem principal, como ver "Acossado" no cine clube, ser premiado no Festival JB e ver as consequências da premiação no festival. Estar bebendo em frente ao Cine Metrópole, em Belo Horizonte, conversando sobre os filmes da Metro vistos ali; os encontros com cineastas; os festivais no exterior - tudo isso marca. São encontros. O romance todo está pontuado por acontecimentos cinematográficos. É um percurso cinematográfico. Agora, filmes, formas narrativas cinematográficas influenciando minha escrita, não. Minhas influências vêm da própria literatura. É Faulkner, Kerouac, Joyce, Fernando Sabino, Mallarmé. Da mesma forma, minhas influências nos meus filmes vêm de outros filmes. É Godard, Losey, Fellini, Eric Rohmer. São canais diferentes. Ambas vão buscar na minha formação no curso de Filosofia. No final de "Onde o Mar Começa", há um trecho em forma de roteiro. Não é uma influência. Justifica-se porque o personagem está fazendo o roteiro de um filme. Será o "Histórias de Alice"? É uma citação de mim mesmo metalinguística em que abordo uma forma alternativa de narração sobre o mesmo tema. Num filme de Godard um personagem pode ler um livro mas continua sendo cinema um filme em que o personagem lê um livro .

Passando seu cinema em retrospecto, que obra o senhor criou?

No primeiro filme - "Telejornal", talvez o mais radical, feito por um jovem cineasta e estudante de filosofia, fã de Godard, Faulkner e James Joyce -, eu questiono a possibilidade de se reconstituir documentalmente a existência histórica de uma cidade desaparecida a partir de fragmentos de imagens e sons, de vozes, ruídos e documentos de toda ordem. Essa postura permaneceu até meus filmes mais recentes, como "Pampulha" e o "Histórias de Alice". Há em mim uma indagação sobre o sentido das coisas e sobre as nossas possibilidades de alcançarmos o seu sentido mais profundo. Em "Histórias de Alice" o personagem principal atravessa o oceano em busca das histórias de sua mãe. São sempre filmes críticos do ponto de vista narrativo, que não se adotam como verdades, que refletem sobre si mesmos, que têm consciência de que são narrativas, um fluxo em devir como queria Heráclito ou Camus a partir de uma visão platônica. Um meio para conversar com o espectador sem a pretensão de deterem a verdade em si mesma.

O senhor citava de Julio Bressane a Coppola em suas aulas de Jornalismo Cinematográfico na UFRJ, nos anos 1990 e 2000. Seus estudo convidavam estudantes a pensar a forma fílmica da expressão audiovisual. Que outros achados o senhor encontrou em sua autocrítica, nessa revisão de sua própria obra?

Outra coisa que constatei foi que fiz filmes sobre loucos sonhadores: Ajuricaba (organizou uma confederação de indígenas para resistir ao invasor) Afonsinho (proibido de jogar futebol porque usava barba, conseguiu "Passe Livre"); Tiradentes (andava pelos caminhos da Colônia pregando a libertação); "O Bom Burguês" (desviava dinheiro do Banco do Brasil para financiar a luta armada); JK e Niemeyer (idealizaram e construíram Brasília). Todos têm isso em comum: pessoas reais ou ficcionais que sonharam mudar o mundo, buscar a justiça o amor, um mundo melhor. Lancei mão em meus filmes de pessoas reais ou ficcionais que falavam por mim, colocavam-se em meu lugar, como máscaras. Elas foram sendo trocadas sucessivamente ao longo de meu trabalho, fazendo-me representar por elas em cada um de meus filmes. Era também, na verdade, uma maneira de melhor apropriar-me de mim mesmo, desvendar-me, escavar-me, entender-me. Constituindo-se ele mesmo em fator construtivo, em construção e constituição por si mesmo no próprio processo devir de constituir-se. Uma coisa que minha literatura tem em comum com meus filmes é essa visão. Meu avô Manduca veio menino de Galafura. O pai morreu na peste do porto de Santos. Ele foi para o Pará, onde era burro-sem-rabo até construir o maior Café de Belém, o Café Manduca. Depois a maior fábrica de calçados de Portugal. Acho que uma revelação que o "Onde o Mar Começa" traz é que na verdade todos esses loucos sonhadores eram uma representação do cineasta do livro.

 

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