Por: Olga de Mello | Especial para o Correio da Manhã

Arqueologia de um massacre

A Chacina de Vigário Geral ocorreu em 29 de agosto de 1993, quando a favela foi invadida por um grupo de extermínio | Foto: Arte sobre imagem do Acervo Viva Rio

Na noite de 29 de agosto de 1993, um domingo, 21 pessoas sem qualquer antecedente criminal ou envolvimento com a marginalidade foram assassinadas na favela carioca de Vigário Geral por homens encapuzados. Os assassinos queriam vingança pela morte de policiais executados, na véspera, por traficantes locais. Uma das maiores chacinas cometidas no Rio de Janeiro gerou um longuíssimo processo com 52 indiciados, todos policiais, a maioria deles lotados no 9º Batalhão de Polícia Militar (Rocha Miranda). Depois de 22 anos, apenas sete dos acusados foram condenados, sendo três absolvidos em um julgamento posterior.

O levantamento minucioso desse bárbaro episódio está em "Massacre em Vigário Geral — Os trinta anos da chacina que escancarou a corrupção policial no Rio" (Record, R$ 79,90), assinado pelos jornalistas Elba Boechat, Elenilce Bottari e Chico Otávio, que entrevistaram promotores, juízes, advogados, sobreviventes e acusados da chacina.

Enquanto Elba e Elenilce, colegas na redação do jornal O Globo, participaram diretamente da cobertura do caso, Chico Otávio, então repórter de política na sucursal fluminense do Estado de S. Paulo, apenas acompanhou o noticiário como leitor, na época. Retomar o caso, trinta anos depois, foi difícil até para os três jornalistas tarimbados. Na abertura do livro, eles contam como cinco crianças acabaram poupadas do massacre por piedade de um dos mascarados. Até hoje Núbia Silva dos Santos, a mais velha daquelas crianças, mostra-se traumatizada pelo que presenciou. Na casa foram assassinados sua mãe, seus tios, seus avós e primos. Ela conseguiu fugir com as crianças pequenas, incluindo um bebê. A comoção ao ouvir Núbia é inevitável, dizem os jornalistas que, para garantir a segurança das informações e evitar qualquer mal-entendido, decidiram que todas as entrevistas com acusados teriam a presença de, ao menos, dois do grupo, garantindo isenção na condução da conversa.

A chacina de Vigário Geral, meses depois do assassinato de meninos de rua que viviam no Centro do Rio, nas imediações da Igreja da Candelária, levou a um dos primeiros registros de ação de "um grupo com uma organização mínima para fins de extorsão de uma comunidade, vendendo segurança contra eles próprios", diz Chico Otávio, autor de um livro sobre o envolvimento de órgãos da repressão com as atividades dos bicheiros e de outro sobre o assassinato da vereadora Marielle e do motorista Anderson.

Para contar um pouco da experiência pessoal e da primorosa pesquisa que levou ao livro, os autores conversaram com o Correio da Manhã

Qual foi a maior dificuldade em resgatar esse caso, trinta anos depois?

Elba Boechat — Conversar com a mãe e irmã do soldado Alexandre Bicego, que foi quem deu início àquele massacre ao jogar uma bomba no bar onde vários trabalhadores comemoravam a vitória do Brasil contra a Bolívia pelas eliminatórias da Copa do Mundo. Eram a mãe e a irmã de um assassino cruel que estavam na minha frente a defendê-lo. Entrar no quarto do Bicego me deu náuseas, mas eu não podia demonstrar nenhum sentimento. No entanto, ver a mãe chorar ao contar que o marido foi definhando até se matar, foi triste. Nenhuma mãe quer que seu filho se torne bandido. Reviver aquele massacre, conversar com as esposas e filhos dos chacinados também foi difícil.
Elenilce Bottari — Entrevistar em dupla ou os três juntos foi muito bom para o desenvolvimento do trabalho. Depois das entrevistas, dividimos o que seria escrito, todos já havíamos trabalhado em reportagens de investigação envolvendo processos criminais. Depois revisamos, lemos o que os outros tinham escrito.
Chico Otávio — O principal depoimento recolhido foi do acusado Neto, que cumpriu 16 anos de prisão e se converteu ao catolicismo na cadeia, graças à Pastoral Penal. Hoje, ele é taxista e considera que pagou pelo crime. Não há como ficar indiferente quando se conversa com alguém envolvido no assassinato de 21 pessoas. Sempre me senti desafiado ao tomar depoimentos de quem está do outro lado da lei. É uma sensação incômoda, sim.

Por que Vigário Geral seria o primeiro marco da formação das milícias atuais? Esses grupos não teriam sua origem ainda na polícia civil dos anos 1960/1970? 

Elenilce Bottari — A partir da chacina, e por sua tremenda repercussão e pífia solução, os policiais perceberam que poderiam, a exemplo dos traficantes, ocupar essas comunidades. A exploração econômica do território é o cerne, a origem desses grupos de milícia que hoje atuam no estado.
Chico Otávio — Naquela época, aqueles policiais cobravam uma taxa dos traficantes permitindo que esses operassem, vendendo drogas, sem ser incomodados. Daí para extorquir comerciantes e vender serviços para a população, como ocorre hoje, é um pulo. Com todo o respeito aos bons policiais, dentro da Polícia está a maior organização criminosa do Rio. E é uma força invencível.

Por que o indiciamento de 52 pessoas foi rápido e o processo demorou mais de vinte anos?

Elba Boechat — O que aconteceu em Vigário já havia acontecido na Candelária. Uma investigação açodada, malfeita, com a intenção de dar uma resposta rápida à sociedade, ONGs e imprensa. Deu no que deu. Entraram muitos, nem todos atiraram, mas a intenção ao ir àquela comunidade era a mesma de todos. Com base no depoimento de uma única testemunha, que também era um bandido, e das fitas chegaram a vários nomes. Poucos foram condenados. O restante, que ainda está vivo, permanece até hoje impune.
Elenilce Bottari — Não houve prisão em flagrante dos acusados, as armas da chacina não estavam com eles. O que aconteceu foi o de sempre. Aliás, a receita da impunidade é essa, a pressa das autoridades para mostrar resultados, com investigações fracas e sem provas, que serão derrubadas a medida em que o clamor público desaparece.
Chico Otávio — É muito difícil bater o martelo com uma história tão confusa. Chegou um momento em que o Ministério Público fechou o caso com o que deu para condenar. Tudo foi metodicamente embaralhado, como acontece em muitas investigações que chegam à Justiça. Surge uma testemunha que depois contradiz seu próprio depoimento, há uma confusão proposital para desqualificar a investigação, aparecem notícias falsas, tumultuam a investigação.

O que Vigário Geral significou para a política de segurança do Rio e do país?

Elba Boechat — Embora ocorressem vários confrontos da polícia com bandidos, Vigário foi o primeiro em que a polícia não ligou se estava matando bandido. Todos eram trabalhadores. E as promessas de que muita coisa mudaria, endureceria na área da segurança, nunca saiu do papel. E com o tempo a guerra só foi crescendo, tendo chacinas ou massacres maiores do que aconteceu em Vigário Geral.
Elenilce Bottari — O Ministério Público hoje está mais aparelhado e os movimentos sociais estão mais organizados e atentos, mas a realidade ainda está longe de mudar. Infelizmente, Vigário Geral é um marco por todos os seus erros. Foi a maior chacina de inocentes perpetrada por policiais de forma clandestina e um festival de erros em sua apuração.
Chico Otávio — De lá para cá, tudo piorou. A violência só aumentou. Grupo de policiais com uma organização mínima com fins de extorsão de uma comunidade, vendendo segurança contra eles próprias. Hoje, eles não precisam mais massacrar para impor seu poder. O poder deles já está consolidado.