Às vezes é difícil saber se Caetano Veloso é mais apaixonado pelo cinema ou pela música. Talvez o cinema seja uma paixão e a música outra, apenas que esta é também seu destino. Talvez, ainda, eu esteja apenas procurando uma fórmula para entender alguém que se interessa por tudo, a escrita, o teatro, a pintura - que pratica com gênio várias dessas artes (a pintura não sei, mas ele a pratica em suas roupas e cenários).
Talvez tudo isso seja resultado da formação baiana do momento a que ele se refere em "Cine Subaé: Escritos sobre Cinema (1960-2023)", volume recém-lançado, organização de Claudio Leal e Rodrigo Sombra.
O fato é que logo desembocou na crítica de cinema, que exerceu de maneira precoce e amorosa. Tinha mais ou menos a mesma idade - menos de 20 - que Rogério Sganzerla quando tomou a si o ofício.
Tinha a experiência de um jovem fã de cinema que não perdia as sessões do Cine Santo Amaro, em sua cidade. A partir dela, dá aulas de liberdade. Quando, por exemplo, designa "Hiroshima, Meu Amor" de poema "literoplástico" e justifica a palavra. Ali, escreve: "Não há só uma fusão de palavras e imagens, mas também a supervalorização do texto... 'cinema' funciona como ilustração, uma ilustração genial, mas ilustração." Pode-se discordar ou não, mas ali está a dúvida que ronda a cabeça de qualquer amante desse filme.
Quando escreve sobre "A Grande Feira", de Roberto Pires (1961), abre o texto assim: "O que tem impedido o surgimento de grandes obras no cinema nacional é a insegurança que o equilíbrio existente entre as tendências de emoção - pessoal, necessidades comerciais, compromissos sociais e estéticos - provoca nos realizadores."
Para ser íntegro, o realizador precisa ser fiel a sua emoção, à sua ideologia política, honesto com o povo (a que deve ser acessível), com a intelligentsia, com os financiadores e ainda fiel à necessidade de criar uma reputação ao cinema brasileiro no exterior.
Com efeito, um acúmulo turbulento de obrigações que passam pela cabeça dos realizadores. Embora os anos seguintes pudessem até desmentir algumas dessas palavras, o desejo de atingir públicos mais amplos e o encarecimento das produções voltam a, em linhas gerais, atestar também a atualidade do diagnóstico.
Os gostos são por vezes sintomáticos do momento. Por exemplo, o texto de "Juventude Transviada", de Nicholas Ray, é um tanto ingênuo (é mesmo), mas James Dean salva tudo com sua presença. De fato, ele está excelente, mas não salva nada: aquela presença dele é do filme, é o filme.
Quanto a "Imitação da Vida", de Douglas Sirk, me surpreendi com a veemência com que desanca esse belo filme. Se viesse de outro crítico eu entenderia, mas Caetano é aquele que reinterpretou "Coração Materno" e mostrou o quanto aquele dramalhão podia ser belo. Mais tarde, Caetano admirará de fio a pavio o cinema de Pedro Almodóvar.
Essas surpresas ajudam. Elas abundam na parte final do livro, em que Caetano se exprime em entrevistas ou fragmentos delas. Numa, diz com todas as letras que prefere Mick Jagger a Ingmar Bergman! Claro, Jagger é uma potência de vida, Bergman é o seu negativo - e também meio chato, embora diabolicamente talentoso. Eu prefiro Arnaldo Antunes a Jagger, porque sua dança é mais original, contida e não contida, nos gestos, na sensualidade, na inteligência. Mas isso é outra história.
Cada página dessa antologia magnificamente colhida e organizada por Leal e Sombra nos diz alguma coisa, nos enriquece de algum modo. Por vezes encherá a algum de nós com a alegria de uma descoberta, pois é um exercício de liberdade que se renova a cada artigo - e até dá vontade de rever seu filme, que vi uma vez e acho que não entendi bulhufas.
Há muita coisa a ler ali. Não posso deixar de dizer, por fim, que a mim sensibilizou em particular a análise precisa dos preciosos filmes de Carlos Adriano, ainda muito pouco vistos e visitados. Mas poetas e poetas se entendem.