Por:

O ronco que move o samba

Instrumento de origens africanas, a cuíca foi sendo adaptada ao longo dos anos e foi introduzida no mundo do samba pelo músico João Mina, tornando-se uma das principais sonoridades das baterias das escolas de samba | Foto: Carlos Monteiro

Dois entusiastas da música popular brasileira se uniram para contar a história de um dos instrumentos mais simbólicos no mundo do samba: a cuíca, cantada na clássica "O Ronco da Cuíca" (João Bosco e Aldir Blanc). O jovem pesquisador Paulinho Bicolor e o veterano escritor J. Muniz Jr. lançam o livro "Cuícas imortais: de João Mina a Boca de Ouro", primeiro volume de uma coleção com o objetivo de evocar renomados cuiqueiros e cuiqueiras que se consagraram por suas façanhas no decorrer do século XX.

A cuíca, um tambor de fricção bastante usado na percussão do samba, se desenvolveu no Brasil a partir de tambores centro-africanos de Angola e do Congo. Há referências sobre instrumentos bastante parecidos, oriundos de regiões onde viviam os kimbundos, ambundos e kiocos. Por aqui, o tambor dos bantos foi chamado, além de cuíca, de fungador, tambor-onça ou angona-puíta.

Nos primórdios do samba, as cuícas, muitas vezes construídas artesanalmente a partir de barricas e pequenos tonéis de madeira, exerciam funções ligadas à marcação do ritmo, explorando sonoridades mais graves. Aos poucos, porém, o instrumento foi se transformando, ganhando características sonoras mais agudas, batucando e repicando sonoridades peculiares em rodas, terreiros, escolas de samba e shows.

A partir da figura seminal de João Mina, batuqueiro do bairro do Estácio de Sá, que introduziu o instrumento nas escolas de samba, temos um passeio que mistura dados biográficos, modos de tocar, inovações, contribuições e heranças deixadas por nomes como Manoel Quirino, Bide, Generoso, Ministrinho e tantos outros. Continua na página seguinte

 

O reflexo de uma paixão comum

Cuiqueiro, pesquisador e mestre em música pela UFRJ, Paulinho Bicolor fez desse livro o reflexo de uma paixão. Ele, que iniciou sua carreira como músico profissional aos dezessete anos, tocando cavaquinho em grupos de samba e de chorinho em Brasília onde nasceu e viveu até 2001. Hoje dedica-se exclusivamente à cuíca. Desde 2010, passou a aprofundar na história e na cultura da cuíca e manter um site com conteúdos sobre o instrumento.

Mas uma visita ao mestre Osvaldinho da Cuíca, em São Paulo, marcaria o ponto de partida desta jornada. Foi lá que Paulinho conheceu J. Muniz Jr. A partir do primeiro encontro, uma amizade se desenvolveu, e a ideia de registrar a história dos grandes cuiqueiros do passado começou a ganhar forma.

"A minha primeira visita ao seu Muniz foi em julho de 2011. Passamos horas conversando em um cômodo de sua casa repleto de memórias, condecorações, flâmulas, fotografias, recortes de jornal, documentos, histórias e sabedoria. Foi como entrar em uma cápsula, atravessar um portal, e acessar tempos, lugares, personagens, que a cada palavra ele descortinava, lembrando casos de suas andanças pelo Rio, sua atuação em Santos e São Paulo, enfim, de toda a sua dedicação heróica, generosa, verdadeira e apaixonada ao samba, de cuíca sempre em punho. E a partir daquele momento ele se tornou a minha maior referência em relação à pesquisa do instrumento. Após uma live que fizemos juntos em 2020, voltamos a nos comunicar com mais frequência, sempre por telefone, e numa das ligações o seu Muniz propôs escrevermos um livro a quatro mãos sobre os grandes cuiqueiros do passado, que eram sempre assunto nas nossas conversas. Topei na hora!", recorda Paulinho.

Seria uma oportunidade única para colaborar com uma verdadeira lenda. Conhecido como Marechal do Samba, J. Muniz Jr. é um dos nomes históricos da X9 Santista, cuiqueiro emérito e consagrado historiador do samba, considerado um dos mais importantes intelectuais do gênero. Aos 90 anos, ele é uma biblioteca viva de conhecimento e atua - além da música - como jornalista e pesquisador da cultura afro-brasileira, com vários livros publicados sobre o universo dos sambistas.

"Foi um trabalho prazeroso, dentro do nosso gosto, isso devido ao forte relacionamento com a cuíca, um dos típicos instrumentos dos primórdios do samba adotado pelas primeiras escolas de samba do Rio. Trata-se, pois, de uma nova contribuição no cenário literário do samba, não só para os cuiqueiros, como para os pesquisadores e estudiosos do palpitante tema", conta J. Muniz Jr.Apesar de tantas histórias do marechal do Samba como ponto de partida, o processo de criação da coleção "Cuícas Imortais" foi intenso e minucioso. Paulinho e Muniz mergulharam nas memórias, entrevistas e documentos para resgatar a trajetória de figuras importantes do mundo da cuíca, como João Mina, Oliveira, Ministrinho, Boca de Ouro, Generoso da Cuíca, entre outros.

"No tocante à seleção dos cuiqueiros, foram considerados, tanto a antiguidade como a notoriedade, principalmente aqueles que foram projetados artisticamente no decorrer dos anos dourados do primoroso século XX. Dessa forma, artistas legendários e outros fascinantes personagens passaram a figurar, com todo calor humano, nas páginas desse inédito trabalho que leva o pomposo título 'Cuícas imortais'", relembra Muniz.

O resultado é uma obra que oferece um olhar detalhado sobre a vida e o legado desses músicos que tanto contribuíram para a imortalização de um instrumento tão característico do samba. Desde a elaboração do escopo do livro até a redação final dos textos, Paulinho e J. Muniz trabalharam em estreita sintonia para garantir que cada página refletisse com precisão a importância desses personagens para a música brasileira.

"Trabalhar nessa coleção, e nesse primeiro volume, especialmente, foi como ser um arqueólogo em busca de elos perdidos, vasculhando o passado da cuíca para reescrever a sua história através do resgate de personagens fundamentais que acabaram esquecidos no tempo", comenta Paulinho.

"Ao relembrar as trajetorias dos grandes construtores dos modos brasileiros de tocar cuica, os autores prestam ainda um servico inestimavel a historiografia do samba, chamando para a grande roda do tempo - pelo nome - aqueles que, a partir das gramáticas do tambor, ousaram preencher o vazio com sonoridades inusitadas", elogia o historiador Luiz Antônio Simas num dos textos de apresentação da obra.