Por: Walter Porto (Folhapress)

Retratos de um artista quando menino

Chico Buarque, aos 80 anos, volta sete décadas no tempo no livro 'Bambino a Roma', mostrando sua infância de calças curtas na capital italiana | Foto: Divulgação

"Que gente longe viva na lembrança/ que gente triste possa entrar na dança/ que gente grande saiba ser criança", cantarolava Chico Buarque lá num dos primeiros sucessos de sua carreira, em 1966.

Mais de meio século depois, é pela literatura que ele se lembra de gente de longe, ensaia seus primeiros passos de valsa e mostra que nunca se esqueceu de seus tempos de menino. Ou melhor, de "bambino".

O vencedor do prêmio Camões, aos 80 anos, volta sete décadas no tempo no livro "Bambino a Roma", que será lançado na próxima semana mostrando sua infância de calças curtas na capital italiana.

Quem conhece a obra de Chico sente as inspirações do país na sensação infantil "Os Saltimbancos", baseada na peça de Sergio Bardotti, e no disco "Per un Pugno di Samba", quando traduziu composições suas como "Sonho de um Carnaval", do começo deste texto, com arranjos de Ennio Morricone.

O disco foi lançado em 1970, durante sua segunda estada mais longa na Itália, exilado por causa da ditadura militar. É um período que o autor costuma querer deixar para trás. Por que, então, voltar ao país nessa obra de maturidade?

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Uma influência afetiva

Cenas da infância de Chico Buarque em Roma. Seu pai, o sociólogo Ségio Buarque de Holanda, desembarcou com a família na capital italiana em 1953 para lecionar na Universidade de Roma | Foto: Acervo pessoal

A influência da Itália sobre Chico é sobretudo afetiva, dizem os especialistas Tom Cardoso, autor de "Trocando em Miúdos: Seis Vezes Chico", e André Simões, de "Chico Buarque em 80 Canções". Lá, sua família morou por cerca de três anos enquanto o pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, dava aulas de estudos brasileiros na Universidade de Roma.

Naquele ano de 1953, quando desembarcou com mulher e filhos no sul da Europa, ele já era o intelectual celebrado por "Raízes do Brasil", cuja tradução o menino Chico encontra por acaso, maravilhado, numa livraria italiana durante "Bambino a Roma".

Antes de mergulhar mais a fundo, é preciso notar que esta não é uma autobiografia, segundo frisam o autor e a sua editora. Chico não quis dar entrevista para se explicar, mas a capa do livro imprime a palavra "ficção" em caixa alta, mesmo com coincidências factuais reconhecíveis por qualquer um que saiba o mínimo de sua biografia.

"Não se trata de um livro de memórias, mas uma ficção a partir da memória", diz Luiz Schwarcz, diretor e editor da Companhia das Letras. "Mesmo fatos reais são narrados com recursos ficcionais e há partes puramente ficcionais. Classificar o livro como 'memórias' seria enganar o leitor."

Deixemos que o "Bambino a Roma" circule como quiser. Uma de suas cenas mais divertidas mostra o garoto assistindo na vitrine de uma loja de televisores a uma partida inesquecível da Copa de 1954, em que o Brasil levou quatro a dois da Hungria. Mas há outro momento adiante, de uma iniciação sexual envolvendo vulvas e gomos de tangerina, que cheira mais a fruto de uma imaginação bem libertina.

As cenas em que o narrador viaja, mais velho, em busca do seu apartamento de infância são outras que exalam um ar mais ficcional, recorrendo a um alter ego de Chico que é famoso, mas circula como um paisano, já frequente em obras como "Anos de Chumbo".

Não faltam, na própria história, pistas sobre seu exercício de memória criativa. "Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho", escreve o narrador. "No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido."

Algumas páginas antes, há um trecho ainda mais singelo quando o menino Chico percebe que o papel de parede de seu quarto, que imitava um muro de tijolos e estava se descolando, mostrava que atrás dele havia tijolos de verdade. "Meu sonhado livro de memórias poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde."

Ao acompanhar as aventuras do garoto, dançando com a estrela de cinema Alida Valli, que conhece como mãe de seu colega de escola, e descobrindo suas paixões enquanto triplica o "R" no sotaque, é difícil não lembrar o "Amarcord" de Fellini, o "Cinema Paradiso" de Tornatore ou os "Ladrões de Bicicleta" de De Sica --este filme, citado nominalmente.

Dentro de um cinema, o futuro cantor rouba a atenção da plateia ao entoar o baião "Mulher Rendeira", que serve de trilha ao sucesso brasileiro "O Cangaceiro", em cartaz por lá - até que "um imbecil gritou 'silenzio!'"

É um tipo de nostalgia que permite entrever uma nova intimidade de Chico - se no livro "O Irmão Alemão" o autor vasculhava com mais severidade o passado de sua família, aqui ele se liberta para comentar o que dá na telha.

E se o estudo das fronteiras borradas entre verdade e narração, a duplicidade entre autor e personagem, continua como um dos grandes temas de seu projeto literário - de "Budapeste" a "Essa Gente" -, aqui ganha um frescor lúdico.

A certa altura de "Bambino a Roma", por exemplo, o narrador lembra quando se esforçou para ensinar ao amigo Amadeo a marchinha mais popular do momento. "Tu pensi que cachaça è acqua/ cachaça non è acqua, no..."

É tentador, afinal, ler tudo o que Chico escreveu desde sempre como o sonho de um Carnaval.