Lídia Jorge: 'Velhice reacende as emoções, não as empobrece'
Autora portuguesa recorre às vivências com a mãe num lar de idosos em 'Misericórdia'
O romance "Misericórdia" pôs a autora portuguesa Lídia Jorge, de 78 anos, numa lista que inclui Milan Kundera, Doris Lessing, Umberto Eco, Philip Roth e Orhan Pamuk. Todos ganharam o prêmio Médicis Estrangeiro, atribuído a cada ano ao melhor livro traduzido para o francês. Em 2023, ela foi a primeira portuguesa a receber a honraria.
Seu livro, lançado agora no Brasil, se baseia numa experiência pessoal da autora, sem chegar a ser autoficção. Durante três anos, ela visitou quase diariamente o lar de idosos onde sua mãe passou os últimos anos de vida.
"Convivi muito com aquelas pessoas, vi as novas amizades que surgiam, como as pessoas resistiam, os namoros em geral platônicos", diz a autora, em entrevista feita no seu apartamento em Lisboa. "Era uma coisa de uma ternura extraordinária."
"Percebi que havia a noção de que restava pouco tempo de vida e, nesse momento, todas as emoções são reavivadas. As pessoas pensam que vai haver um empobrecimento dos sentimentos, mas acho que é o contrário. O que existe ali é uma exaltação de tudo."
O lar de idosos que aparece em "Misericórdia" pode ser lido também como um microcosmo da Europa. Junto com os momentos ternos há cenas violentas e momentos de racismo e homofobia.
Em Portugal, como na maior parte dos países europeus, grande parte dos cuidadores são imigrantes. Isso possibilita um intercâmbio de culturas, mas também desperta a xenofobia. Há também o olhar desconfiado todas as vezes que desaparece algum objeto de estimação dos residentes.
"Paga-se muito mal por esses serviços, por isso os cuidadores logo partem para empregos melhores", diz a autora. "Isso cria relações dilacerantes às vezes, porque o idoso que aguarda o cuidado estabelece com facilidade laços de grande intimidade. E os cuidadores estão permanentemente a partir. Uma casa de idosos é como um cais de saída e um cais de chegada", reflete.
Uma das personagens mais interessantes do romance é a brasileira Lilimunde, cuidadora a quem a protagonista se afeiçoa. Separadas por um oceano e várias gerações, elas compartilham um segredo. A interação entre as duas revela o olhar sofisticado da autora para as diferenças culturais.
Lídia Jorge apurou seu olhar para a diversidade durante períodos em que viveu na África como professora. Ela irrompeu na literatura nos anos 1980 com vários romances premiados, entre eles "A Costa dos Murmúrios", passado em Moçambique, uma crítica potente ao colonialismo português.
O cenário de devastação do coronavírus também surge no livro. "Minha mãe faleceu de Covid no dia 19 de abril de 2020, foi uma das primeiras vítimas no sul de Portugal", diz a escritora. "A última vez que a vi foi em 8 de março, porque no dia seguinte o lar foi fechado. Ninguém podia sair à rua. O enterro foi praticamente sem ninguém, éramos 12 pessoas contando o padre."
Jorge considera que a mãe, nonagenária, conseguiu desfrutar dos últimos anos de vida à sua maneira. Seu espírito otimista pode ser resumido numa frase da protagonista: "Eu sei que a felicidade é um bem muito escasso. Devemos guardá-lo sobre o peito quando nos toca por perto, encher com ela todas as algibeiras da alma, para servir de escudo quando o seu oposto acontece".