Quem me dava mesada, ela, minha avó; e, caso mantivesse as economias, comprava um livro na última sexta-feira de cada trimestre, ou seja, por ano, minha biblioteca recebia quatro novos colegas, cujas palavras me faziam companhia. Sempre após as aulas do então 2º grau, pegava uma barca em Niterói, e ela me deixava no porto seguro, a Livraria Leonardo da Vinci, onde aprendi a ouvir com os olhos a vital importância silenciosa dos livros. Hoje, não é a mesma Leonardo, mas ainda pulsa no subsolo da Av. Rio Branco.
A Leonardo agora é uma livraria-café e, nesses dias, entre uns goles de capuccino e umas páginas, pupilas se abriram para "Luiz Gama contra o Império", do premiado Bruno Rodrigues de Lima. Em poucos minutos, o livro me convence de ser lido.
Levei-o para minha biblioteca por 150 reais para saber que, vendido como escravo pelo próprio pai, um branco, quando tinha 10 anos de idade, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, aos 8 anos, tem sua mãe, uma negra, desaparecida por suspeita de insurreições de escravos, diga-se, fracassadas. Aos 17, conhece Antonio Rodrigues de Prado Junior, um branco, amigo com quem aprende a ler e a escrever, devendo ser considerado, primeiro, que Luiz Gama quis saber. A alfabetização o liberta e, aos 18 anos, depois de saber ler e escrever, fuge do cativeiro.
A escrita de Bruno Rodrigues nos conduz à delegacia em que Gama trabalha e, da forma como trabalha, amplia sua visão. Nas páginas 158 e 159, registram-se algumas de suas qualidades: leitor, escrita sofisticada, memória normativa.
No caso da memória, significa que Luiz Gama conhece a burocracia e as fontes do direito. Mais: na função de copista, internaliza os segredos de Estado. Sua luta, então, não se dá fora e contra o poder; mas, porque se serve dele, sua luta acontece dentro e entre o poder. Não é, portanto, uma luta identitária, marcada pela oposição entre Luiz Gama e o Estado, visto que Gama se identifica com o poder e, para alargar ainda mais tamanha identificação, Gama chega à função de escrivão. Aos 27 anos, com um posto mais alto, segundo Bruno Rodrigues, "dominava o arquivo local, adquiria conhecimento normativo na resolução de conflitos da vida ordinária".
Se Gilles Deleuze pudesse se referir a Luiz Gama, diria que a natureza de seu combate político é molecular e, em virtude disso, não combate contra, mesmo que o título do livro discorde do filósofo francês. Belíssima biografia.