CRÍTICA LIVRO - IMPOSTORA - YELLOWFACE: Uma questão de caráter

Por Olga de Mello | Especial para o Correio da Manhã

Antes de 'Impostora', R.F. Kuang recebeu o prêmio Nebula para livros de ficção científica

Em sua primeira incursão literária fora do segmento de ficção científica/fantasia, a americana R.F. Kuang criou uma intrigante trama satírica sobre a solidão do escritor e a fábrica de sucessos do mercado editorial em Impostora - Yellowface (Intrínseca, R$ 56,90). Neste thriller sem assassinato, a falta de caráter move a narradora, uma escritora malsucedida que faz um best-seller ao lançar como seu o livro de outra autora.

Invejosa, mas com senso crítico apurado, a protagonista, June Hayward, tem uma relação constante de admiração e despeito com Athena Liu, de quem foi colega na universidade. Enquanto Athena se consagra, June passa despercebida, atribuindo seu fracasso à falta de representatividade étnica. Quando Athena morre repentinamente, June está a seu lado e, antes de chamar médicos e policiais, rouba o manuscrito do novo livro da rival, um romance histórico sobre a exploração de trabalhadores chineses durante a Primeira Guerra Mundial.

O sucesso, enfim, chega para June, que aceita assinar o livro sob seu nome verdadeiro, Juniper Song, cuja aparente ancestralidade oriental pode vir a impulsionar o lançamento. Ao longo de um ano, o texto é reescrito por June e sua editora. Sem qualquer drama de consciência, June faz palestras sobre o tema, abre um, fundo de bolsas de estudos para jovens autores com o nome da "melhor amiga" Athena. Ao mesmo tempo em que é acusada de apropriação cultural, ela analisa o quanto a indústria forja best-sellers, moldando textos ao gosto de um público ávido por consumir tendências em moda.

Em entrevistas, R.F.Kuang tem criticado diretamente o hipercompetitivo mercado literário que criaria um falso desejo do público por histórias que tratem da diversidade étnica, forçando os escritores descendentes de orientais a escreverem sobre traumas de imigração e as dificuldades para se integrarem nas sociedades onde cresceram. É o mesmo ponto levantado por Percival Everett em Erasure (adaptado para o cinema com o título de Ficção Americana), no qual um autor negro se insurge contra a obrigatoriedade de limitar sua criação ao universo dos marginais e drogados, reforçando preconceitos raciais. Kuang afirma-se contrária ao reducionismo do discurso identitário que torna um produto "exótico e vendável".

A anti-heroína que justifica assinar o manuscrito alheio incipiente depois de enriquecer o texto do qual se apropriou, acaba acusada de plágio e sofre condenação pública, assédio e cancelamento na Internet, carecendo de amigos ou família em quem se apoiar. Sempre sozinha, ela precisa elaborar estratégias para retomar sua popularidade, contando apenas com o consolo de algumas amizades virtuais.

Antes de Impostora, Kuang ganhou o prêmio Nebula para livros de ficção científica, com a trilogia de fantasia A guerra da papoula, em que deuses e monstros se encontram na Segunda Guerra Sino-Japonesa, na história militar da China no século XX e na ascensão de Mao Tsé-Tung ao poder. Ao transitar pelo mundo real, ela detalha a pressão da competição que norteia os negócios planeta afora, notadamente na Meca do capitalismo, que transformou a cultura em produto industrial. Se a protagonista não sofre com dilemas morais, nas entrelinhas de Impostora, Kuang destila todas as ressalvas de quem produz excelentes peças industriais.