CRÍTICA LIVROS: Cabeças coroadas
Duas senhoras europeias vêm entusiasmando leitores do mundo todo com histórias sobre a alma feminina e os preconceitos que cercam mulheres. Em artigo no jornal La Stampa, a romancista italiana Donatella di Pietrantonio, de 62 anos, discorre sobre "O Lugar" (Fósforo, R$ 55,90), da francesa Annie Ernaux, de 83. E embora o etarismo continue privilegiando as inovações de jovens autores, essas duas idosas do século passado encantam diversas gerações pela capacidade de transformar a reflexão do passado em discussão sobre o presente.
Annie Erneaux ganhou o Nobel de Literatura em 2022, "pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal", segundo divulgou a Academia Sueca. Já Donatella acaba de receber o Strega, maior prêmio literário da Itália, por seu romance "L'etá Fragile" (A idade frágil), inédito no Brasil. Dela, por aqui, só saiu "A Devolvida" (Faro Editorial, R$ 49,90), em 2019, a intrigante história de uma menina cujos pais adotivos entregam de volta para a família biológica.
Ernaux ficou conhecida pelo público brasileiro pouco antes de ganhar o Nobel. Desde então, seus romances autoficcionais têm sido lançados aqui com regularidade. Muitos têm poucas páginas, como "O Lugar", em que aborda o constrangimento experimentado diante de sua própria origem. Depois de ascender da classe média baixa ao abraçar o magistério, ela admite se envergonhar dos pais, pequenos comerciantes sem instrução. Seus textos têm cuidado quase científico, embora versem sobre o dileto tema de sua vida, amores, experiências, sentimentos, aborto, câncer, paixões. A personagem é distante, solitária, sofrida, autoconstruída na busca do conhecimento e rejeição à família original, com uma autossuficiência analítica que beira a arrogância. Uma vida devotada à arte ou a arte que se transformou em vida, talvez.
Enquanto Ernaux diz que seu desejo de escrever foi a necessidade de representar fielmente o feminino na literatura, com a autenticidade que jamais encontrou nos autores homens, Donatella pretende, através de sua obra, defender os direitos pela qual sua geração de mulheres lutou arduamente e que hoje não são mais considerados garantidos. Ela vive na região de Abruzzo, onde nasceu, e ainda exerce a profissão de dentista. Escolheu permanecer distante do centro literário do país, criando histórias baseadas em situações universais, como os assassinatos de duas jovens, durante uma excursão, em 1997, que ela relembra em "L'età Fragile". A menção ao crime questiona a idealizada segurança das pequenas localidades, além de ter como pano de fundo a violência de gênero e o medo perpétuo das famílias diante do "perigo lá fora". A convivência com o trauma e a insegurança ultrapassam o período de interesse da mídia pelo crime, que não acompanha a retomada do dia a dia dos que sobrevivem.
No artigo, Donatella reflete a respeito de sua criação, seguindo experiências descritas por Ernaux. O afastamento da francesa do pai se dá a partir da adolescência, quando adquire consciência sobre o que o conhecimento poderá lhe proporcionar. A italiana também buscou preparo profissional bem diverso de sua família camponesa, porém permanecendo próxima dela. "Talvez tenha me livrado desse mundo ancestral contra o qual lutei por dentro, mas permaneci em órbita", diz, reconhecendo a rotina dura da família em sua infância - a mãe sempre trabalhando, sem tempo para dar carinho à filha.