Por: Olga de Mello | Especial para o Correio da Manhã  

Júlia Wähmann: 'Sempre tive uma relação com diários'

Em seu quarto romance, Julia Wähmann se volta para as lembranças do avô, de grandes escritoras e suas recordações como forma de enfrentar o isolamento na pandemia | Foto: Demian Jacob/Divulgação

Habituada a registrar seu cotidiano e anseios em diários desde a infância, a carioca Julia Wähmann empreende uma viagem de reconhecimento próprio em "Triste Cuíca" (Janela + MapaLab, R$ 64,90), seu quarto romance, iniciado em pleno isolamento devido à pandemia de Covid-19. Uma época propícia a reflexões sobre suas memórias e a descobertas, como o depoimento do avó, combatente do Exército brasileiro na Segunda Guerra Mundial, a quem Júlia não conheceu. Foi dos relatos do avô que nasceram o livro e o título, emprestado de um samba de Noel Rosa, aludindo a um certo Laurindo – nome pelo qual seu regimento era chamado.

Ao deparar-se com as observações do avô, Julia decidiu buscar textos escritos desde o início da pandemia, incluindo os de seus diários de infância e adolescência. Foi o esboço de um livro composto de fragmentos, que traz também trechos, análises e fatos a respeito de diários de escritoras, entre elas Joan Didion, Virginia Woof e Annie Erneaux. Os contatos com quem está distante, por telefone/lives no período em que se isola na casa com o pai pontuam uma fascinante colagem, à qual não faltam notícias da evolução da luta contra a doença, vindas do mundo exterior. Nesta entrevista ao Correio da Manhã, Julia Wähman, revela o processo de criação desse delicado mosaico literário.

 

Ao ler seus diários de infância e adolescência, você se reconheceu naquela menina, apesar de experimentar alguns constrangimentos?

Julia Wähmann – Eu me reconheço em muitos aspectos. Carrego muitas características daquela menina. Sobretudo me pergunto o quanto aqueles registros, a insistência em olhar para certos eventos de uma determinada maneira, acabaram por moldar alguns traços de personalidade. Acho que parte do constrangimento vem dos arroubos sentimentais, de alguns primeiros ensaios de querer dizer coisas para as quais eu ainda não tinha as ferramentas e nem a maturidade adequadas. Ao mesmo tempo, ao constrangimento se segue um tipo de ternura, sabe? Um sentimento doce de me ver menina de novo. É bonito ter essas pequenas máquinas do tempo analógicas nas gavetas, e por fim isso se sobrepõe às vergonhas e desconfortos.

Como foi conhecer seu avô através das considerações sobre seu tempo e a guerra?

Meu avô morreu antes do meu nascimento, e, portanto, eu só o conhecia pelo que falavam dele. Ter acesso a esse depoimento, em primeira pessoa, dá uma outra dimensão sobre uma parte significativa da vida dele, sobre quem ele era, ainda que se trate de um evento muito específico. O registro foi um depoimento feito ao Exército, e posteriormente incluído em um dos volumes da série "História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial", publicados pela editora do Exército. De certa forma, já eram públicos, embora, claro, raríssimas pessoas teriam acesso, curiosidade e talvez fosse improvável que aparecessem num livro de literatura.

O interesse pelos diários diversos em vários formatos – escritos, filmados – que levaram ao livro só surgiu na pandemia?

Sempre tive uma relação com diários, mantenho o hábito até hoje - com muito mais autoconsciência e bem menos espontaneidade, ainda que eu esteja sempre prestes a botar fogo neles! Boa parte dos blogs bebia da fonte dos diários, como ainda hoje se faz, de certo modo, em redes sociais. Na adolescência, adorava crônicas, que, para mim, têm suas afinidades com diários. Com o tempo fui me afeiçoando a essas narrativas, que quase sempre são vistas como menores, e procurando ler diários e outros tipos de escritas mais intimistas, mais observadoras do cotidiano ao redor. Naquele primeiro ano do isolamento, muito do que se produziu, em termos artísticos, estava ligado às novas rotinas e restrições impostas pela pandemia. Esses universos particulares, privados, ficaram mais expostos, fossem por meio da escrita ou de outras expressões. O próprio desenrolar da pandemia, do ponto de vista científico, ia se escrevendo a cada dia, se atualizando a cada dia.

Há alguns temas que se entrelaçam no livro: os diários, o diário em si, a pandemia. Mas nenhum deles revela muito sobre a narradora. Os textos são ficção ou genuinamente seus, da Julia?

Naquele primeiro ano do isolamento, muito do que se produziu, em termos artísticos, estava ligado às novas rotinas e restrições impostas pela pandemia. Esses universos particulares, privados, ficaram mais expostos, fossem por meio da escrita ou de outras expressões. O próprio desenrolar da pandemia, do ponto de vista científico, ia se escrevendo a cada dia, se atualizando a cada dia. Os textos são uma grande mistura. Parte deles foi escrito em 2020. Passados dois anos, voltei a eles com outros olhos. Tem muito de invenção. O apagamento de detalhes ou de dados mais concretos é proposital, mas a narradora está muito presente na maneira de observar e juntar certos elementos. Usei muito todas as formas de comunicação virtual, tanto para trabalho quanto para as relações familiares etc. Foram boias de salvação, reconheço o privilégio que muitos não tiveram, e sou grata por isso. Ainda mais grata pela emoção dos primeiros reencontros reais, dos primeiros abraços calorosos.