CRÍTICA / LIVROS: Refúgios de vidas

Por Olga de Mello | Especial para o Correio da Manhã

Nos anos 1970, o cinema alemão teve sua redescoberta mundo afora, com Werner Herzog despontando como um de seus maiores nomes. O apuro na direção e produção de filmes e óperas teve uma base firmada nas movimentadas infância e juventude do menino nascido em plena Segunda Guerra Mundial, mas criado no interior da Baviera, onde começam as recordações da autobiografia "Cada um por si e Deus contra todos" (Todavia, R$ 78,90) - que deveria ser o título de "Kaspar Hausen", o filme que o catapultou para o sucesso.

Contador de histórias primoroso, Herzog acumulou experiências de um Jack London moderno: trabalhou, adolescente, em barco pesqueiro na Grécia, fez mochilão na África, estudou nos Estados Unidos, mas precisou fugir para o México quando o visto expirou, virou palhaço e ainda foi contrabandista. Tudo antes de completar 25 anos e iniciar a carreira cinematográfica.

Criança, ao lado do irmão mais velho, aprendeu a ordenhar vacas e a aproveitar as temporadas mais quentes para uma invejável existência de moleque, percorrendo campos, escalando montanhas, sempre descalço; sapatos eram luxo a serem calçados apenas nas estações frias. Havia camponeses, conta, que trabalhavam como "servos na Idade Média", no país arrasado pela guerra.

A carreira profissional - dirigiu 48 filmes e 27 óperas - é apresentada como uma consequência da observação do que encontrou planeta afora. As caóticas produções tomam proporções trágicas a começar pelo protagonista de cinco de seus longas-metragens, o estrelíssimo Klaus Kinski, que tornava qualquer set insuportável com seus acessos de fúria. Justificando a insensatez de Kinski pelo amor à arte, Herzog desfia recordações sobre diversos personagens que passaram por sua vida, incluindo sua peculiar família, além de publicar trechos de seus diários de incursões caminhando por toda a Alemanha, comprovando seu imenso talento como contador de histórias, com requintadas descrições de cenários.

Para falar sobre sua trajetória pessoal e artística, Jocy de Oliveira, no belíssimo"Alucinações autobiográficas" (Todavia, R$ 63), parte de um diálogo com Mathilda e outras personagem de suas óperas, revisitando a casa da família, em Curitiba, onde nasceu. Ao mesclar parentes, amigos e criações, surge uma narrativa singular sobre quase noventa anos de vida dedicados à música combinada com a arte visual em projetos inovadores que transformaram a cena mundial. O pioneirismo na produção multimídia foi fruto de muita luta contra o machismo do universo artístico, que ela povoou de mulheres fortes, determinadas e trágicas. Poética na conversa com as personagens, Jocy de Oliveira enfatiza o quanto uma biografia é criação literária.

A húngara Ágota Kristóf (1935-2011) abdicou do próprio idioma ao fugir de seu país, dominado pelos soviéticos, com o marido e uma filha de colo para a Suíça, aos 21 anos. A bagagem, além das roupas da criança, se constituía de dicionários. Na Suíça, são bem-recebidos e vão trabalhar numa fábrica, onde não entendem o que os colegas dizem. Em "A analfabeta" (Editora Nós, RS 48), ela conta como reconstrói suas referências culturais consumindo literatura francesa.

Nos anos 1950, devido à entrada soviética na então Tchecoslováquia, Ota Kobelus, o avô de meus filhos, buscou abrigo no Brasil, criando aqui uma família brasileira. Como Ágota, também precisou esquecer a língua materna, passando a "sonhar em português".

Mais de seis décadas passadas, guerras, fome, invasões e miséria continuam levando ao exílio cerca de 120 milhões de pessoas no mundo inteiro. No Brasil, 58,6 mil imigrantes pediram asilo em 2023, um aumento de 8.273 solicitações em relação ao ano anterior. Hoje, o país tem 143.033 refugiados.