Há 60 anos, a violência urbana nas metrópoles brasileiras era projetada para compor um futuro distópico, iniciado, em plano realista, na década de 1980. A agressividade policial e a negligência do Estado no combate à violência foram gestadas pelas práticas de tortura contra presos políticos, enquanto a apatia da classe média se escora no tratamento discreto e constrangido do que já chegou até a receber uma tentativa de apelido absurdo de "ditabranda".
As pavorosas recordações desses anos de chumbo, vez por outra, conquistam leitores - e não apenas nas reflexões acadêmicas. Quase dez anos depois de lançado, Ainda estou aqui (Companhia das Letras, R$ 59,90), de Marcelo Rubens Paiva, acaba de entrar nas listas de livros mais vendidos, impulsionado pela divulgação do filme baseado na história de Eunice, a mãe do autor e viúva do deputado Rubens Paiva. As memórias do menino Marcelo se intercalam com a trajetória de Eunice, que viu o marido ser levado de casa, no bairro carioca do Leblon, em 1971. Rubem Paiva jamais retornou. Enquanto criava os cinco filhos sozinha, Eunice Paiva estudou Direito, especializou-se em defesa dos indígenas e lutou para que o governo brasileiro reconhecesse a morte do marido, cujo corpo nunca foi encontrado. As recordações da própria Eunice tornam-se obscuras quando ela, na maturidade, é diagnosticada com o Mal de Alzheimer. Cabe ao filho mais moço resgatar a história da família que precisou sobreviver de ausências.
A escritora Ana Kiffer também se volta para a tensão enfrentada por sua mãe, Cléa, presa, em 1968, por militares que procuravam seu marido, o deputado João Kiffer Neto. O tocante No muro de nossa casa (Bazar do Tempo, R$ 47,20) acompanha a detenção de Cléa, mãe de duas crianças, grávida (de Ana). O muro da casa da família, em Niterói, amanhece pichado com inscrições de que ali morava um comunista - como eram identificados quase todos os adversários ao regime antidemocrático, então. A pichação anônima não apenas expõe a militância de Kiffer Netto - que, cassado, voltou a trabalhar como psiquiatra -, mas a intimidade da família para toda a vizinhança.
Uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais, a psicóloga Cecília Coimbra, relatou à Comissão da Verdade as torturas a que foi submetida ao longo de três meses de prisão, em 1970, no quartel do Exército onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações (DOI), no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Em Fragmentos de memórias malditas (N-1 Edições, R$ 52,90), Cecília acrescentou a seu depoimento informações que traçam o cenário do país na época de sua prisão, apresentando o contexto político, econômico e cultural daquele período. As descrições sobre a violência são breves e o mais objetivas possíveis. Do texto, emerge tanto quanto o horror pela brutalidade a que aquelas pessoas foram submetidas, o pavor que a expectativa de quantas atrocidades - entre elas a de ter um filhote de jacaré caminhando sobre seu corpo, como aconteceu com Cecília - aconteceriam a quem resistisse às sevícias. Os torturados que melhor sobreviveram à barbárie até hoje convivem com sensações de mal-estar quando um eletrodoméstico é acionado, por lembrar os ruídos de aparelhos para transmitir choques elétricos nos presos. Já os torturadores, que não chegaram a ser punidos na proporção dos maus-tratos infligidos, contribuíram para a brutalização das forças policiais num país a cada dia mais violento.