A barbárie do apagamento veste farda

Em meio aos debates sobre a ditadura abertos por 'Ainda Estou Aqui', a professora Patrícia Machado racha o ovo da serpente dos anos de chumbo nas páginas de 'Cinema de Arquivo'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Hércules 56', um dos filmes com imagens icônicas da ditadura

Esquecer sempre foi um verbo útil a governos ditatoriais como confirma a pesquisadora Patrícia Machado em "Cinema de Arquivo", livraço da Sagarana Editora recheado de relatos de vozes por muito tempo invisibilizadas que ampliam o debate sobre as múltiplas violências cometidas pelo governo militar, ao longo de 21 anos de ditadura. Essa fatia sangrenta de nossa História vai ser revisitada nas telas a partir desta quinta-feira (7), com a estreia do esperado "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, que escancara delitos de estado cometidos por um Brasil de farda.

Laureado pelo júri popular da recém-encerrada Mostra de São Paulo, depois de conquistar o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, o novo longa-metragem do realizador de "Central do Brasil" (1998) resgata a peleja jurídica da advogada e ativista Eunice Paiva para expor a brutalidade sofrida por seu marido, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva. O sumiço dele, pouco depois de ter sido levado para depor por agentes do governo, ocorreu no início dos anos 1970.

É sobre esse período de arame farpado, compreendido entre 1964 e 1985, que Patrícia se debruçou em "Cinema de Arquivo", ao mapear arbitrariedades históricas. A pesquisa, apoiada pela Faperj, foi realizada em acervos públicos e privados, vasculhando prontuários, relatórios e documentos da polícia política. Neles, Patrícia descobriu figuras como Nego Fuba, um desaparecido político que foi filmado por Eduardo Coutinho na Paraíba cometendo o crime do qual foi acusado pela ditadura (falar para a multidão).

Em sua triagem de fatos, ela aborda dois cineastas que registraram manifestações de 1968 e precisaram esconder as imagens que produziram. Fala ainda de um militante que faz parte do Grupo dos 70, consegue ir para o exílio no Chile, transforma-se em cineasta e realiza um raro filme em que denuncia a tortura cometida no Brasil com depoimentos de torturados.

"A gente se interessa no livro tanto pelas perspectivas daqueles que seguraram uma câmera em um momento de perigo, para registrar o acontecimento histórico, quanto dos sujeitos que encontraram em algum momento com a câmera", explica Patrícia, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação e da graduação em Estudos de Mídia da PUC-Rio.

"São sujeitos anônimos - camponeses, trabalhadores, estudantes, militantes - que estavam em diferentes medidas engajados na luta contra a ditadura. Os registros produzidos nos encontros foram o detonador de perguntas que fizemos para as imagens sobre a luta e o destino desses homens e mulheres".

Combate ao esquecimento

O mote do livro - assim como o do filmaço de Salles - é combater o esquecimento em torno da tortura e do silêncio. "A busca das respostas nos ajudou a elaborar parte de memórias do período que estavam apagadas, em alguma medida. É bem impressionante quando as imagens nos mostram, por exemplo, que ainda no início dos anos 1970, homens e mulheres contaram para as câmeras as torturas que sofreram, em ricos detalhes", diz Patrícia.

"Enquanto prestavam seus testemunhos, outros homens e mulheres sofriam as mesmas violências em prisões brasileiras. É muito impressionante também ver como foi preciso criar rotas clandestinas de imagens de manifestações públicas contra a ditadura para que esse material chegasse ao exterior, onde as denúncias poderiam ser feitas (à medida em que a censura proibia a circulação dessas imagens no país). Descobrimos também a última imagem de um camponês que, logo depois de filmado, é assassinado pela polícia e se torna um dos desaparecidos políticos brasileiros".

Patrícia vai atrás de documentos iconográficos e audiovisuais esquecidos (alguns quase desaparecidos) produzidos no período - relativos a perseguições, torturas, manifestações de rua, prisões - e presentes no cinema de realizadores e teóricos como o já citado Coutinho, Eduardo Escorel, Olney São Paulo, Chris Marker, Luiz Alberto Sanz e José Carlos Avellar. Segundo a pesquisadora e professora Andréa França, que assina uma das orelhas do livro, a Patrícia investiga as origens dessas imagens, suas intenções, suas circunstâncias de arquivamento e, ainda, sua retomada em filmes contemporâneos, tais como: "Hércules 56" (2006), de Silvio Da-Rin; "Retratos de Identificação" (2014), de Anita Leandro; "Setenta" (2013), de Emilia Silveira.

Seu levantamento de dados foi finalizado em 2016, no mesmo ano do golpe parlamentar que resultou na retirada de Dilma Rousseff da Presidência da República. A principal sequela do impeachment foi o crescimento radical da extrema-direita no país, acompanhado dos apelos de volta dos militares ao poder, cujos murmúrios iniciais foram ouvidos nas manifestações de 2013.

"O cinema, de forma geral, nos oferece caminhos poderosos de ampliar nossas percepções, sensibilidades e conhecimento do mundo e dos processos históricos. Nesse caminho, descobrimos histórias não contadas, angústias vividas e detalhes das violências cometidas. É o caso, por exemplo, do testemunho de mulheres que sofreram com a misoginia na tortura e que contam esses detalhes quando chegam no exílio, já que no Brasil esse assunto era tabu".

Apesar da proliferação, na internet, de informações ligadas aos 21 anos contextualizados em "Cinema de Arquivo", patrícia observa que as redes sociais estão assombradas por um preocupante processo de descontextualização de vivências da ditadura. "Foi muito curioso quando vi uma fotografia de uma manifestação pública com a participação de atrizes como Norma Bengell e Leila Diniz ser usada como propaganda política de Michele Bolsonaro. É a completa deturpação do sentido histórico daquele registro", alerta Patrícia.