Forja viva de jornalistas profissionais em seu trabalho (hoje aposentado) de editor de caderno de cultura, Eduardo Souza Lima, um carioca de Realengo celebrizado na imprensa e no cinema sob a alcunha de Zé José, viaja por cânones da literatura e do audiovisual (conscientemente ou não) nas páginas de seu novo romance: "A Transação do Infinito". O livro já está à venda no site de sua editora, a M.inimalismos.
Sua trama pode ser resumida como a aventura de um tal de José, que busca o seu norte num Brasil sem bússola. Cada parágrafo de sua história é um oásis de referências (literárias, cinéfilas e sociológicas) arejado pelos coqueiros da ironia que Zé José sempre planta em sua escrita ferina. Um dos críticos cinematográficos mais mordazes do país entre os anos 1990 e 2010, ele faz ficção literária em planos-sequência. Sua experiência como cineasta pesa: é realizador de curtas como "Bola Para Seu Danau" (2015) e codirigiu o longa-metragem "Rio de Jano" (2003), com Anna Azevedo e Renata Baldi.
Antes de "A Transação do Infinito", Zé José desbravou as veredas das letras com "Martina no Vale do Germânio", uma prosa com tintas de absurdo. Agora, em sua nova expressão ficcional, esse quadrinhófilo (fã da Sociedade da Justiça e do Arqueiro Verde) passa por um chão de terra batido em busca de uma poética particular. A poética de quem nasceu e cresceu em zonas consideradas periféricas desta cidade. Seus personagens têm um charme que evoca "O Diabo Veste Azul" (1995), thriller de Carl Franklin que ele sempre citava em resenhas. A tensão de seu José lembra a nervosa saga do detetive vivido por Denzel Washington nesse filmaço noventista, mas seus perigos são outros. Dão fome.
Diretamente de Paraty, que virou sua Gotham City de residência, Zé José esmiúça suas ambições literárias no papo a seguir.
O que seu Zé... o Zé do Lacerda... carrega dos Gracilianos de Nelson Pereira dos Santos, um dos cineastas que mais te influenciaram?
Eduardo Souza Lima: Basicamente os genes. Chamei o papagaio de José de Graciliano em homenagem ao escritor e também porque o de "Vidas Secas" sequer tem nome e foi completamente ofuscado por Baleia. Dada a sua importância capital na história, achava injusto. Mas, falando sério, se for para falar de um escritor nordestino presente em meu livro, eu citaria, obviamente, Ariano Suassuna. Como tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente, é muito mais que uma influência literária, mas de vida. Certa vez, entrevistei-o e ele me disse que usou o humor em "A Pedra do Reino" porque seria a única forma de enfrentar aquele episódio tão trágico. Uso o humor da mesma forma. Quando começo a escrever, geralmente não sei onde vou parar.
De que maneira a literatura que forjou sua esgrima com a prosa, antes do jornalismo, incluindo aí a literatura gráfica de Carl Barks, autor de HQs do Pato Donald, faz-se útil na sua consolidação como escritor?
Carl Barks é o meu autor favorito. É um influenciador de fato. Seus quadrinhos me levaram a Homero e, em minhas histórias, quero levar o leitor a conhecer coisas que não estão diretamente no papel, despertar sua curiosidade. Daí usar tantas citações. Tanto fazer com que elas não atrapalhem o fluxo da leitura, que a história seja compreensível mesmo que você não conheça mitologia asteca. Digamos que encaro isso como se fosse uma responsabilidade social. Gosto de usar elementos gráficos nas histórias que escrevo, mas não há nenhuma novidade nisso e nem acho que venha diretamente dos quadrinhos, mas do "Tristam Shandy", Laurence Sterne; do "S" de stalely do "Ulisses", de James Joyce; dos capítulos em reticências de Machado de Assis; e das ilustrações dos livros científicos de antigamente. Mas a verdade é que nem sempre a gente sabe de onde vêm nossas influências, não é racional e, sim, necessidade.
Longe de ser literatura regionalista, embora flerte com os cânones desta aqui e ali, teu "A Transação do Infinito" parece uma geografia dos afetos de quem vive nas periferias, nos subúrbios, nos Realengos deste país. Assim sendo, ou parecendo, o que há (e o que fica) de "autogeográfico" nessa sua escritura?
Para os cortes de Rio e São Paulo, todo o resto é periferia. Não há diferença entre Realengo e Pernambuco. Tenho uma relação especial com Pernambuco, onde praticamente morei na década passada. A gênese de "A Transação do Infinito" é uma encomenda do cineasta Claudio Assis. Ele me pediu que escrevesse um argumento e me deu somente um mote: Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, cantando no sertão pernambucano. Esta é uma região que conheço bem. É um espaço mítico, povoado por personagens reais tão fascinantes que a literatura não daria conta. Imaginei um road movie em que o herói interagiria com esse mundo e o apresentaria ao espectador. Acontece que o Claudão nunca me respondeu. Tenho o costume de guardar todas as minhas ideias, pois ideias não caem do céu.
O olhar de cineasta se manifesta nos seus cortes (literários) dignos da edição de mestres da montagem. O cinema está ali, com você, na prosa, mas e nas telas? Você filma o quê agora? Suas críticas de cinema de outrora podem voltar à tona?
Parei com o cinema. Me lembrei de quando o Lourenço Mutarelli (o autor da HQ "A Confluência da Forquilha") parou com os quadrinhos ou o meu amigo João Moraes, com a música. Hoje, ambos são escritores. Chega uma hora em que a gente cansa de dar murro em ponta de faca, e vício tem de cortar de vez. Crítica eu fazia por dinheiro, era um profissional. Hoje dou palpite, para me divertir. Está muito bom.
O crítico de cinema que ainda mora em você gostou mais de que filmes deste Oscar? Fora dele, que cineasta - do Brasil e do mundo - você recomendaria hoje para quem anseia por filmar?
Não vi nenhum dos favoritos ainda. O Oscar não me diz nada. É um programa de TV cafona. Mas obviamente vou torcer pela Fernanda Torres - que representa o melhor do brasileiro, é uma mulher muito inteligente e espirituosa - e por "Ainda Estou Aqui", pelo momento político difícil pelo qual passamos. Se eles ganhassem, quem sabe os fascistas daqui sossegassem um pouco o facho. Mas sei que é difícil e temo que o fato de não levar seja tratado como derrota por esse tipo de gente sem escrúpulos. Afinal, com eles todo cuidado é pouco. Para mim, o grande cineasta do momento é o Alex Garland (diretor de "Guerra Civil"). É dos poucos realizadores que tocam em questões contemporâneas que realmente importam, pois o fim do mundo está logo ali. Isso é algo que me incomoda bastante na crítica cinematográfica atual. O pessoal vive numa redoma, tomando fresquinho no ar-condicionado do Palais des Festivals de Cannes.