CRÍTICA / LIVROS: A violência nossa de cada dia
O escritor Salman Rudshie define "Faca - reflexões sobre um atentado" (Companhia das Letras, R$ 41,90), seu envolvente e brilhante relato sobre o ataque que sofreu, como "um acerto de contas". O ateu confesso Rudshie não demonstra a menor compreensão ou oferece perdão ao americano que o esfaqueou, cujo nome sequer é citado no livro, um relato detalhado da recuperação do autor britânico nascido na Índia.
O ressentimento contra Hadi Matar, de 24 anos, deu lugar ao atordoamento pelo atentado, que deixou o escritor cego de um olho e com diversas sequelas em um dos braços e na fala. Salman Rudshie estava prestes a iniciar uma palestra em Nova York quando o jovem de origem libanesa o atacou, sendo contido pelos participantes do encontro, em 2022, mais de trinta anos depois que o então líder iraniano aiatolá Khomeini sentenciou o escritor à morte por "heresia" no texto do livro "Os versos satânicos".
Para muitos ocidentais, regidos pela moral cristã, a mágoa de Rudshie pode até parecer descabida, embora natural. Após descrever os pormenores de todo o tratamento, ele restringe as palavras de carinho para a mulher e os filhos de dois casamentos anteriores. A objetividade do texto se dirige apenas aos procedimentos médicos. Matar, recentemente indiciado por terrorismo, só merece seu desprezo e a criação de um extenso diálogo fictício, sem qualquer complacência pela motivação do jovem muçulmano.
É também no ressentimento que se pauta o denso, impressionante e hipnótico "A cláusula do pai" (Ayiné, R$ 59,90), de Jonas Hassen Khemiri. Ao abordar as relações de uma família sueca, detendo-se sobre aspectos da paternidade e a identidade masculina no mundo contemporâneo, Khemiri, sueco descendente de tunisianos, identifica seus personagens pelas múltiplas funções exercidas em diferentes momentos - um avô que é pai, um pai que é filho, uma irmã que foi mãe -, nos raros encontros durante a visita à Suécia do patriarca, que vive no estrangeiro. Ao escolher não dar nomes aos personagens, o autor, um sucesso em seu país, com quatro romances e seis peças traduzidos em 25 idiomas, reforça o quanto cada ocasião exige de um adulto. O filho, em licença paternidade, cuidando de duas crianças pequenas, é malvisto pelo pai por não abraçar totalmente seu papel de provedor. O avô, gentil com os netos, mostra orgulho de haver cumprido seu dever, embora tenha deixado a família para morar fora do país. Os filhos têm críticas aos hábitos e à desorganização do pai, que não querem hospedar. A convivência ocasional é árdua e indesejada: todos enfrentam suas angústias separadamente, sem buscar apoio nos outros.
Para relaxar depois de leituras profundas e reflexivas, nada como começar o ano com um thriller que trata de pulsões, destino, conflito social e um pouco de psicopatia. "Nada disso é verdade" (Intrínseca, R$ 50), da inglesa Lisa Jewell, traz o encontro casual de duas mulheres que comemoram o aniversário no mesmo bar. Enquanto Alix é bem-sucedida profissionalmente e tem uma família de anúncio de margarina, Josie, sua "gêmea de aniversário", sobrevive com dificuldades econômicas e pessoais. As duas mulheres acabam se encontrando com muita frequência para gravar um podcast produzido por Alix, com relatos sobre as relações disfuncionais de Josie com o marido e duas filhas problemáticas. Da amizade forçada surgem verdades que deveria permanecer ocultas para o bem de todos.