Chico Buarque é conhecido (e amado) pelo público feminino por sua capacidade de descrever a alma das mulheres em suas canções. O disco ao vivo em dueto que gravou com Maria Bethânia em 1975 tornou-se um marco na carreira de ambos. Em 2022 e 2023, o cantor, compositor e escritor recrutou outra cantora para dividir o palco com ele. Com a excelente Mônica Salmaso a tiracolo, emocionou o país com os shows da turnê "Que Tal Um Samba?", que chega nesta sexta-feira (24) ao mercado no formato físico de CD duplo e DVD e também nas plataformas musicais.
Em 2022, a canção "Que Tal Um Samba?" fazia um convite hedonista no meio da travessia de horrores. Chico, acertadamente, propunha um samba para o desconjuro da maré de fascismo e pandemia, ou de pura "demência", e nos fazia pensar em sua trajetória renovadora nesse gênero musical. Outra vez, Chico condensava a história do samba e a volta por cima da história, prevista por ele entre pavores e prazeres, como se desafiasse o país a evoluir junto com a sua linha melódica.
Nas imagens do banho coletivo de sal grosso, os jogos poéticos buarqueanos absorviam a língua das ruas, com rimas engenhosas, e punham a negritude e a cultura popular como obstáculos à "força bruta".
Em "Que Tal um Samba? (Ao Vivo)", gravado pela Biscoito Fino no Vivo Rio nos dias 3 e 4 de fevereiro deste ano, é a resposta do artista a essa travessia de "inferno e maravilhas", recorrendo ao seu cancioneiro de voo universal, uma janela ampla para o mundo. No roteiro de 31 faixas, o compositor reúne músicas sem rugas do tempo e de significados novos quando espelhadas umas nas outras, acentuando o desenho de sua arte inclinada a inumeráveis jogos de armar. Todas as canções de longa idade ganham expressão inédita em sua releitura dinâmica.
Chico move a história, dispondo de canções de dimensão social e individual, política e romântica. O show reflete seu tempo histórico numa poética atemporal e reafirma o impulso de Chico Buarque em redimir os humilhados e as belezas de uma civilização ameaçada. Não há desconversa. As tensões surgem com "Todos Juntos", sua versão para a peça infantil "Os Saltimbancos" (Sergio Bardotti e Luis Bacalov), "Passaredo" (com Francis Hime), "Sinhá" (com Edu Lobo), "Bancarrota Blues" (outra com Edu), "O Meu Guri", "As Caravanas", "Deus Lhe Pague" e a faixa-título.
Nessas canções, sobrevoa-se o medo ambiental, a crueldade fundadora do Brasil, o esculacho na população negra, o ressentimento dos injuriados e a maternidade trágica das periferias. Mas aflora a reação aos desconcertos. E a brisa de "Bom Tempo".
Algumas canções causam estranheza por remeterem menos ao passado em que foram compostas do que à inquietação com o futuro. "Mar e Lua", o retrato dramático de um amor lésbico, do álbum "Vida" (1980), renasce nova em folha num período de cerco e repressão a casais homoafetivos. Pouco a pouco, Chico reitera as ideias e imagens de "Sinhá" e "As Caravanas", das mais fortes canções da música brasileira contemporânea, lançadas nos discos de 2011 e 2017. Ele não esquece, porém, a trilha amorosa e o próprio fato de sua obra ser uma razão do nosso encanto pelo mundo, bem como um parâmetro de beleza e verdade na língua portuguesa. Assim, não sem espanto, chegamos à virtuosidade de "Noite dos Mascarados", "Sem Fantasia", "João e Maria", "Biscate", "Choro Bandido", "Sob Medida", "Bastidores", "Imagina", "Samba do Grande Amor", "Beatriz" e "Injuriado".
Na turnê, ao dividir o palco com Mônica Salmaso, Chico estreitou o diálogo da cantora paulista com a sua obra, manifestado em álbuns como "Voadeira" (1999) e "Noites de Gala, Samba na Rua" (2007), este último totalmente dedicado ao repertório buarqueano, com uma regravação modelar de "Beatriz". Um ano antes, no álbum "Carioca" (2006), Chico convidara Salmaso a participar da faixa "Imagina", uma de suas parcerias com Tom Jobim. Desde o citado disco e show com Maria Bethânia, o compositor não dividia um projeto com uma intérprete.
A presença de Salmaso estimulou as expressões teatrais de Chico, mais solto nos duos e solos, e ergueu uma ponte entre a alma carioca do compositor e a musicalidade dos paulistas. Em mais de um plano, o show festeja o canto feminino, pois ainda homenageia Gal Costa (1945-2022), evocada em "Mil Perdões", e a irmã Miúcha (1937-2018), com "Maninha", o mergulho ficcional do cantor na infância com a irmã, além de tudo sua cúmplice nos primeiros estudos do violão da bossa nova.
Evoé aos mestres
Chico entra em cena no momento em que Salmaso canta "Paratodos", uma tirada de chapéu à sua genealogia musical e um evoé aos mestres do futuro. Sem alarde, a faixa marca outro vínculo, o de Chico com o maestro Luiz Cláudio Ramos, tradutor discreto e profundo de sua cabeça musical, continuando um diálogo iniciado há 50 anos, na gravação de "Bárbara" para o disco "Calabar" (1973), que teve arranjos de Edu Lobo.
Adiante, Ramos ajudou a conceber as harmonias do show de Chico & Bethânia e fez o arranjo para orquestra de "Mulheres de Atenas", em "Meus Caros Amigos" (1976). No "Chico Buarque, de 1989, ele elaborou a maioria dos arranjos, mas só a partir de "Paratodos" (1993) assumiu a direção musical dos discos e shows. Sua colaboração ressalta as afinidades harmônicas com Chico e o entendimento de seu processo criativo.
Esse período de felicidade musical, sob a regência de Luiz Cláudio Ramos (arranjos, guitarra e violão), inclui a banda formada por João Rebouças (piano e cavaquinho), Jorge Helder (baixo, violão e bandolim), Jurim Moreira (bateria), Chico Batera (percussão), Bia Paes Leme (teclado e voz) e Marcelo Bernardes (sopros).
Na cenografia de Daniela Thomas, 25 imagens de fotógrafos brasileiros - Araquém Alcântara, Sebastião Salgado, Thereza Eugênia, Cristiano Mascaro - traduzem a imaginação dos temas buarqueanos. A escuta contemporânea de música e o registro em vídeo ajuda a prolongar a experiência de um espetáculo musical em sua complexidade.