Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O Kaurismäki da virada

O imigrante Khaled em O Outro Lado do Paraíso, que acaba de chegar à MUBI | Foto: Divulgação

 

Consagrado numa votação da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) com o título de Filme do Ano, lá em 2017, "O Outro Lado da Esperança" conquistou o um rol de láureas, a começar pelo Urso de Prata de Melhor Direção na Berlinale, o que cacifa sua entrada na grade da MUBI. Mas seu maior realce na mostra que o streaming de curadoria humanizada, dedicado ao cinema de autor, promove ao revisitar a obra do cineasta finlandês Aki Kaurismäki é ressaltar uma espécie de ponto de virada em sua produção. Atualmente, ele arranca suspiros dos espectadores brasileiros com "Folhas de Outono" ("Fallen Leaves"), laureado com o Prêmio do Júri de Cannes em maio passado. Concorreu ao Globo de Ouro e tem tudo para ser indicado ao Oscar, quando as nomeações foram anunciadas, no dia 23 de janeiro. Kaurismäki já entrou no rol de concorrentes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas antes, com "Um Homem Sem Passado" (Prêmio do Júri de Cannes em 2002). Mas foi a partir de "The Other Side Of Hope" ("Toivon Tuolla Puolen", no idioma original da Finlândia, que ele passou a ser visto como um dos realizadores de maior relevância da contemporaneidade.

"E agora parei de beber...", brincou o diretor na coletiva de lançamento de "Folhas de Outono" em Cannes, contrariando sua aparição borracha no Festival de Berlim, quando foi chamado pra buscar o troféu de Melhor Realização dado a "O Outro Lado da Esperança". Levantou-se de sua poltrona no Berlinale Palast trocando as pernas e quase caiu. Mas nada disso arranhou a boa reputação de olhar corrosivo sobre a situação dos refugiados. No caso, a trama desta comédia política fala sobre um imigrante ilegal sírio que se alia a um trambiqueiro em ascensão, na Finlândia. Um de seus protagonistas é Khaled (Sherwan Haji), um jovem sírio que busca reencontrar sua irmã em uma Europa desatenta ao drama de quem buscou asilo por lá. Quem vai lhe dedicar mais atenção é o malandro e ás do carteado Waldemar Wikström (Sakari Kuosmanen), que consegue montar um restaurante com uma bolada conquistada no baralho. "Precisamos tratar quem vem de fora com mais atenção e altruísmo, pôs amanhã os refugiados podemos ser nós, europeus", disse Kaurismäki quando o filme estreou.

Quando o longa estava em gestação, a Quinzena de Cineastas de Cannes deu a ele o troféu honorário Carroça de Ouro pelo conjunto de uma obra que hoje ganha novos holofotes no www.mubi.com. Já estão lá cults como "Sombras no Paraíso" (1986), "A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos" (1990), "Nuvens Passageiras" (1996), "Luzes na Escuridão" (2006) e o memorável "O Porto" (2011). "Folhas de Outono" entra nesse pacote a partir do dia 19. Há uma brevíssima aparição de Khaled (o personagem de Sherwan Haji), compondo uma conexão com "O Outro Lado do Paraíso".

Repleto de alusões à filmografia de Charles Chaplin (o deus de Kaurismäki), "Folhas de Outono" escancara a ferida da Guerra da Urânia. Na narrativa, há um rádio sempre com notícias contra a Rússia ligado na casa da protagonista, Ansa (Alma Pöysti). Primeiramente, ela nos é apresentada no cargo de funcionária de supermercado. Depois disso, vira faxineira de bar e, por fim, torna-se operária de fábrica. Sua vida é monótona, solitária e embolorada. Até as lasanhas congeladas que compra dão mofo. Amparado pelo carisma dessa atriz de amplo ferramental cômico, Kaurismäki ensaia uma mudança súbita na rotina de Alma. Seu cotidiano muda quando ela se encanta por um homem que conhece num karaokê, Holappa, vivido pelo brilhante Jussi Vatanen. Ele também se encanta por ela, vive só e carece de um benquerer pra chamar de seu. Seu problema: ele bebe. Bebe muito. Na ciranda entre o álcool e uma paixão verdadeira, o personagem de Vatanen sofre uma reeducação afetiva. E a gente senta no banco escolar da empatia com ele, num filme de que dificilmente se esquece. É a simplicidade a serviço do lirismo, como tudo o que Kaurismäki faz.

 

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