Zeca Pagodinho conta que há alguns anos, achou nas fitas uma música de Monarco - histórico compositor da Portela de quem Zeca era fã ao ponto de, na adolescência, persegui-lo em um ônibus para cantar para ele suas canções favoritas. Gravou "Peregrinação" em 2019, no álbum "Mais Feliz".
Há nas fitas também algumas colaborações de Zeca com Arlindo Cruz, o maior parceiro de sua carreira, que desde 2017 sofre as consequências de um acidente vascular cerebral. O mais ilustre morador de Xerém não conseguiu visitar o amigo, que vive em estado delicado, até hoje.
"As músicas me levam para lá, onde a gente estava. Fico 'caramba, esse dia foi na casa dele, no Morro do Fubá'. Lembro daqueles amigos todos brincando, bebendo. Fico triste por saber que isso não vai voltar mais. Às vezes consigo fazer isso em Xerém, mas não com a mesma intensidade."
Zeca também encontrou composições dele que não quer retomar porque já não pensa mais como antigamente. Ele cita "Amarguras", gravada pelo Fundo de Quintal, que diz na letra "de que vale a vida se eu não tenho a sorte". "Não posso mais cantar isso. Antes eu não tinha, mas hoje tenho a sorte", diz.
É uma decisão que também mostra como Zeca tem apreço por aquilo que é de verdade. Só quer cantar aquilo que faz sentido para ele. Não gosta de sorrir em fotos com fãs quando está triste, e pede a fotógrafos que não o dirijam durante os cliques - preza pela espontaneidade.
"Lama nas Ruas", clássico dele com melodia de Almir Guineto, foi escrita para uma paixão que não foi para frente. Mas, no caso dessa canção, ele diz, "combina sempre". "Essa música fiz para Mônica Evelyn. Hoje, ela deve ter uns 60 anos. Não sei. Nunca mais a vi."
Mais recentemente, Zeca abriu alguns cadernos antigos após a cantora Teresa Cristina ter pedido músicas a ele para gravar um álbum interpretando só composições dele. De um deles, também, resgatou uma letra para uma parceria, a sua quarta, com o sambista Moacyr Luz.
Achou também uma letra escrita ao lado de uma foto do tipo Polaroid de uma mulher nua, entregue a Zeca por ela "Acho que eu escrevi aquele poema para ela, mas não lembro quem é. É muito antigo. Romântico. Não lembro se beijei nem se cheguei a conhecê-la. Foram muitos beijos pelo mundo."
Antes de ser trazido por Beth Carvalho para o centro dos holofotes, Zeca queria ser apenas compositor. Desprezava - e despreza até hoje - a cultura de celebridade, sejam as selfies ou os pedidos de autógrafo, que o impede de ter uma vida simples, algo que só consegue quando está em Xerém.
Com 14 ou 15 anos, Zeca diz, ele já escrevia. Nessa época, fez um poema no estilo acróstico com o nome da filha de uma vizinha, Alessandra, quando ela nasceu. Ouvia seresta e jovem guarda com a família, e era chamado de velho por gostar de sambas antigos de Elizeth Cardoso.
Queria estudar instrumentos, mas desde a adolescência não pôde porque tinha que trabalhar - motivo pelo qual criou o Instituto Zeca Pagodinho, em que oferece aulas de música. Entrou de vez nesse universo quando conheceu Arlindo Cruz e passou a frequentar rodas de samba, em especial a do Cacique de Ramos.
Antes do Cacique, diz Zeca, o samba da velha guarda era "reto". "Lá, [os instrumentistas] tocavam baixinho, para se ouvir quem estava cantando. Tinha muita gente, mas todo mundo tocava com disciplina e suavidade. Hoje em dia ficou tudo muito rápido, acelerado, não dá nem para ouvir a letra."
Ali, o samba passava por uma transformação, com a criação e inserção de instrumentos como tantã e repique de mão, em encontros de onde saíram nomes como Fundo de Quintal, Jorge Aragão e Almir Guineto, além de Zeca e Arlindo, entre outros, muitos deles apadrinhados por Beth Carvalho.
Era um jeito novo, particular e extremamente influente de se fazer samba - algo que intimidava Arlindo. "Lá não dá para a gente entrar não", ele dizia a Zeca. Mas os amigos chegaram na roda e, num intervalo, pediram para cantar uma música. "Começamos a cantar e eles começaram a voltar, aí passamos para a roda da frente", diz Zeca.
Foi quando ele ganhou fama de partideiro de mão cheia, Beth o chamou para gravarem juntos "Camarão Que Dorme a Onda Leva", composição de Zeca, com clipe exibido no Fantástico, da Globo, e o resto é história. Nessa época, ele diz, pagode não era sequer nome de gênero musical.
Hoje, Zeca é adorado por rappers, desde quando Marcelo D2 o citou como principal referência em uma entrevista dos anos 1990. Mais recentemente, conheceu o mineiro Djonga. "Ele conheceu o pessoal do quintal do Pagodinho, teve uma aula aqui. Ficou amarradão. Pediu ajuda para montar repertório, quer gravar samba."
Em relação ao funk, Zeca vê semelhanças em como o gênero hoje é discriminado, por questões sociais e de raça, de forma parecida como aconteceu com o samba décadas atrás. "É uma pena porque tem tanto cara bom no funk", diz. "Mas o samba não tinha tanto isso de apologia de crime."
Mas na vitrola de Zeca, que só usa celular para "ligar, atender e tirar foto dos meus netos", a música que toca vem de outros tempos. Assim como sua TV fica ligada no canal Viva e na Globo, onde ele assiste a novelas antigas e à versão original de "Escolinha do Professor Raimundo".
De certa maneira, Zeca vive numa temporalidade própria, é remanescente de uma era em lenta decomposição, que pulsa quando ele sobe ao palco, como fará em sua próxima turnê. Mais que um intérprete raro, com o microfone ele se torna condutor de uma expressão que tem força para dar sentido a um país, que evoca modos de vida em atrito com a complexidade tecnológica e a desigualdade social de um capitalismo avançado.
Enquanto dribla a nostalgia melancólica, Zeca não deixa de celebrar a vida - talvez sua qualidade mais reconhecida, além do talento musical - pois sabe que não há coisa mais feia que gente chorando de barriga cheia. Quando olha para trás, comemora que se tornou amigo de ídolos como Monarco e Martinho da Vila. "Que vida maluca do caralho, né?", diz. "E boa demais. Para quem sabe viver. Tem gente que não sabe."