Por: Affonso Nunes

Um álbum iluminado

Luz da Criação, Deco Fiori | Foto: Divulgação

O carioca Deco Fiori tem grandes credenciais musicais. É um destacado preparador vocal de programas de TV, musicais para teatro e estúdios de gravação e dublagem. Cantor de belo timbre pode ser visto com frequência nos palcos com o espetáculo "Para Lennon & McCartney - Os Beatles e o Clube da Esquina" interpertando canções de duas de suas maiores influências. Mas estava devendo ao público um álbum autoral que mostrasse seu lado cantautor.

Estava, mas não está mais. Deco acaba de lançar, em mais uma cuidadoso, título do selo Clube Novo o álbum "Luz da Criação". Nessas dez faixas totalmente autorais, o artista apresenta melodias instigantes, harmonias elaboradas e um fino senso estético herdado de suas assumidas influências musicais sem, no entanto, mostrar um trabalho datado.

Milton Nascimento já nos ensinou que sonhos não envelhecem. Aliás, brotam das linhas que pintam e bordam na imaginação de Deco Fiori, entrelaçados pela pintura do artista plástico Paulo Symões. Em plena pandemia, suas tintas serviram de farol não somente para a faixa-título, mas para a própria concepção do álbum. "Esta música foi a mola propulsora do trabalho. A partir dela comecei a compor e a elaborar o conceito do disco. Em meio às incertezas, a arte foi a minha maneira de atravessar a escuridão", destaca o cantor.

O mestre e amigo Toninho Horta comparece com sua centelha seminal. Gravou o violão e co-assina o arranjo da faixa-título com o diretor musical Marcílio Figueiró, um discípulo do guitarrista mineiro.

"Novos Ventos" é outra a trazer o violão de Toninho Horta, apoiado pelo sax tenor de Nivaldo Ornelas. Para que "todos os temporais / deixem almas lavadas", há ecos de Minas, Abbey Road e Motown: "é uma canção mais pop, com influência de Stevie Wonder e Beatles", sopra Fiori. Integrante do espetáculo Para Lennon & McCartney, que une temas dos Beatles aos do Clube da Esquina, o artista transita com destreza pela longa e sempre ventilada estrada das canções.

"Um grão de areia ao vento pertence tanto ao mar quanto ao deserto", canta Deco em "O Mar e o Deserto", sob o órgão de João Braga. Os vocais na abertura da faixa, todos interpretados por Deco, são um oásis artesanal sem qualquer efeito de estúdio para modular a voz. "Essa é uma das poucas músicas do álbum que fiz no século passado, mais precisamente em 1996", revela o compositor. "Gravei as vozes em diferentes canais, o que dá um sentido de amplidão de que gosto muito. Sempre cantei em grupos vocais e quis colocar esta influência no álbum", explica o ex-integrante de Vox 4 e BR6, grupos vocais de prestígio nas década de 90 e 00.

"Um Jardim e um Sonho" semeia esperanças em clima de balada romântica, a partir das árvores genealógicas de nomes como Lô Borges, Paul McCartney e Guilherme Arantes. Entre "Luz e sombra / brisa e calor", é o próprio Deco Fiori quem toca piano no arranjo cultivado a quatro mãos com Paulo Emmery.

No compasso das craviolas de nylon e 12 cordas de Eduardo Braga ("a mão direita mais poderosa que conheço", emenda o cantor), pontuadas pela gaita de Guta Menezes, "Só de Amor" surfa em pop elegante. Pelos contornos da onda soul de Stevie Wonder e Al Jarreau, a canção - gravada anteriormente pelo Vox 4 - desbrava o oceano das paixões, "nadando sempre contra a corrente / mas nunca contra o mar".

Com letra em inglês, "Broken Heart" junta os pedaços do amor desfeito e ameniza os males de corações partidos pela vibração do blues e do jazz. Também lançada pelo Vox 4, adquire pulsação orgânica na recriação solo de Deco: "a base de piano, baixo acústico e bateria foi toda gravada em conjunto. Marcílio Figueiró colocou a guitarra e eu gravei os vocais. É a sexta música do álbum digital, eu a vejo como a primeira do lado B em um disco de vinil".

A canção folk "Todo Amor é Bom" escala as montanhas de Minas impulsionada pelo trompete de Guta Menezes, em contraponto às vozes sobrepostas do cantor: "pensamos num efeito de sopro que remetesse à trompa de 'For no one', dos Beatles. É a canção mais recente que fiz para o álbum, o arranjo abre espaço para o diálogo entre vocal e sopro".

As águas fluem volumosas entre "O Rio e o Tempo", onde "a poeira vai baixando / e o rio nunca vai secar / ele é como o tempo que nunca para de correr". Inspirada no som pantaneiro de Almir Satter, e escaldada na sanfona de Marcelo Caldi e na flauta de PC Castilho, angaria simbolismos diversos para o artista: "fiz esta canção em 2016, motivado pela perda de um amigo, depois de anos sem compor. Ela veio inteira, de modo instantâneo. Representa uma retomada importante no meu processo autoral, na própria vida pessoal".

"Como Ser Feliz na Solidão?" surge como um canto vigoroso onde "nem tudo é só carnaval / ou só indignação". Deco Fiori destrincha: "é o rock'n'roll do disco, mas um rock acústico, onde toco mandolim e violão de 12 cordas, com teclado do meu irmão João Braga, baixo e guitarra do meu genro Hugo Belfort. Tem uma sonoridade de cordas diferente, gosto de pensar nela como um encontro entre Lulu Santos e George Harrison".

No ato final de "Lamento", Deco canta em dueto com a filha Sofia Jordão Caeiro, também autora da capa do álbum. Entre o ocean drum de Naife Simões, o violoncelo de Mateus Ceccato e os violões de Marcílio Figueiró, o artista sabe que viver é melhor que sonhar - "relento não fosse sonho / sonho que sopra no vento".

"Luz da Criação" foi concebido e executado com zelo e artesania. É uma tela em branco de rica moldura que se preenche de luz e som, trazendo a luz um artista apaixonado por seu ofício.

 

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