Uma grife com problemas

Osesp faz 70 anos e sofre com quadro de músicos incompleto

Por Gustavo Zeitel (Folhapress)

Sob a regência do maestro inglês Neil Thomson, músicos da Osesp ensaiam na Sala São Paulo

Nas noites de concerto, o portão de ferro da Sala São Paulo separa duas realidades distintas. Do lado de fora, o cenário de emergência humanitária é composto por amontoados de lixo e grupos fumando crack. Dentro da sala, impera a sobriedade, típica do mundo da música de concerto. Entre uma taça de espumante e outra, o público flana pelo hall até que trombetas soam, anunciando o início do programa.

Em 2024, a sala faz 25 anos e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo completa sete décadas de existência. O conjunto abre a próxima edição do Festival de Berlim, mas as comemorações são abafadas por dois desafios. Funcionários da Osesp relatam o medo que sentem ao caminhar pelos arredores da sala, cercada pela cracolândia, e temem a piora na qualidade das apresentações, com a falta de músicos em posições de liderança e o excesso de artistas temporários.

Todos os naipes da Osesp - nome dado à seção de uma mesma família de instrumentos - são chefiados por um músico, quando, em geral, uma orquestra deve ter dois chefes, que se alternam ao longo do ano. A depender do repertório, os artistas se apresentam juntos. Faltam agora outro "spalla", violinista que é o braço direito do maestro, e outras primeiras flauta, viola, trompa, trompete e violoncelo, informa a listagem da Associação dos Músicos.

De acordo com Jefferson Collacico, presidente da Aposesp, os atuais líderes dos naipes ficam sobrecarregados, tendo de trabalhar por sucessivas semanas sem descanso e sem a preparação ideal para as apresentações.

Para preencher as vagas, a Osesp recorre a músicos de fora, o que representa um entrave para o desenvolvimento artístico da orquestra, que se alicerça numa unidade sonora. Collacico afirma que algumas vagas estão em aberto há muito tempo. Há dez anos, ele diz, não há outro "spalla", além do italiano Emmanuele Baldini.

"É como time de futebol. Você não vê os times jogando com convidados", diz Collacico, contrabaixista. Ele acrescenta que a direção faz economia ao recorrer a temporários, algo que outros funcionários da orquestra ouvidos pela reportagem também afirmam.

O diretor-executivo da Osesp, Marcelo Lopes, e seu maestro e diretor musical, Thierry Fischer, afirmam que os músicos têm razão em apresentar a queixa.

Lopes diz que é comum os conjuntos contratarem artistas temporários, mas não em funções de liderança. Afinal, os chefes de naipe ditam como a partitura deve ser interpretada e executam os solos atribuídos ao seu instrumento. Ele ainda afirma que a Osesp está empenhada em recrutar os artistas, o que deve ocorrer a longo prazo e com cuidado artístico, já que a formação de uma orquestra é um projeto geracional.

"A Osesp não vai se acomodar", diz Lopes. O diretor não nega, porém, o peso orçamentário que as contratações podem representar. "Estamos falando de um custo fixo na folha de pagamento nos próximos 40 anos. É uma questão de responsabilidade fiscal."

Neste ano, o investimento na Osesp, entre patrocinadores, verba pública e doações, aumentou em R$ 10 milhões. Agora, será um montante de aproximadamente R$ 140 milhões, sendo R$ 65,5 milhões, ou 47%, vindos do governo do estado de São Paulo. Sob Tarcísio de Freitas, do Republicanos, o repasse aumentou em R$ 2 milhões.

Músicos e diretoria têm consciência, no entanto, de que o desafio é ainda maior --e isso tem a ver com o globalizado e bilionário mercado da música de concerto. Não se encontra um músico sinfônico como se contratam profissionais de outras áreas, com currículos e entrevistas.

As grandes orquestras disputam hoje uma corrida para captar os artistas mais talentosos do mercado. Se a Osesp entra em conflito com as principais instituições do mundo, ela também sai em desvantagem, dado o contexto socioeconômico do Brasil e a queda do valor da nossa moeda, que dificulta a contratação de estrangeiros.

Em maio, Fischer fez uma audição para um "spalla", mas o candidato não foi aprovado nem por ele nem pelo naipe.

Em paralelo, os funcionários e o público da Osesp enfrentam um problema urgente --a convivência com a cracolândia. Atualmente, mil usuários de drogas moram na rua dos Protestantes, a poucos metros da praça Júlio Prestes, onde fica a Sala São Paulo, uma Viena no meio do abandono.

"Estamos numa área conflagrada, mas somos um ato de resistência", afirma Marcelo Lopes, o diretor-executivo da Osesp. Dois integrantes da orquestra relatam em anonimato um mesmo incidente no fim da temporada passada. Um músico lanchava, na frente da sala, quando um homem roubou seu telefone. Ao reagir, o artista se machucou e desfalcou o conjunto.

O caso exemplifica uma luta que se arrasta há décadas. Há 20 anos, os sucessivos governadores e prefeitos tentam resolver a questão.

Apesar dos desafios, a Osesp vive um momento de prestígio, sendo considerada pela crítica especializada a melhor orquestra da América Latina. São 104 músicos, sendo 34 brasileiros e 70 estrangeiros, de países como Moldávia e Romênia, mas faltam mais chefes de naipe. Para termos de comparação, a Filarmônica de Nova York tem menos contratados, 89, mas seu quadro está completo.

Tampouco o público desistiu da região central. Em 2022 e 2023, o público cresceu 14%, atraindo mais de 246 mil pessoas no último ano. O conjunto tem boa relação com Thierry Fischer, maestro suíço nascido na Zâmbia há quatro anos em São Paulo. Ele é descrito como um homem polido e democrático. Nos ensaios, gosta de dialogar com a orquestra e trabalhar as cores e os timbres.

Faltando pouco mais de um mês para o início da temporada, Fischer aposta no feijão com arroz do repertório sinfônico e dá atenção especial à primeira e segunda escola de Viena. Entre os destaques, estão o Ciclo Brahms - a interpretação integral das sinfonias do alemão Johannes Brahms- e o Festival Schubert, com as principais obras do compositor.

No aniversário da Sala São Paulo, em julho, a Osesp toca o mesmo programa que inaugurou a casa - a "Sinfonia nº2", de Gustav Mahler, apelidada de "Ressurreição".