Por: Gustavo Zeitel (Folhapress)

Um maestro para reger o coro pela paz

Karabtchevsky em sua casa na Gávea. O maestro está prestes a iniciar sua primeira turnê internacional regendo a Petrobras Sinfônica | Foto: Zo Guimarães/Folhapress

Não se ouvia nada além do vento, soprando o frescor de sua brisa nas árvores. Era uma manhã de outono e, no alto de uma ladeira na Gávea, na zona sul carioca, Isaac Karabtchevsky se preparava para mais um dia de estudos no escritório da sua casa, incrustada na Floresta da Tijuca.

Figura central da cultura brasileira, o maestro mais importante do país não tem uma fórmula para a longevidade que o mantém no pódio, às vésperas de comemorar, em dezembro, os seus 90 anos.

Talvez o segredo seja o idealismo que deixa transparecer ao pontuar cada frase com um sorriso pacificador, um contraste com a voz grave, a postura ereta e os cabelos ainda esvoaçantes.

Atando as duas pontas da vida, ele combina seriedade, para reger a Orquestra Petrobras Sinfônica, a Opes, na primeira turnê internacional em 49 anos de existência do conjunto, com serenidade, a fim de lidar com os dilemas que o noticiário apresenta à sua música, fundada numa experiência judaica.

Sionista, o maestro está espantado com a guerra entre Israel e Hamas, que já vitimou mais de 30 mil pessoas. "Estou absolutamente convicto de que a solução passará pelo reconhecimento de dois Estados, que sejam civilizados, não basta ter dois Estados", diz ele.

"Israel tem o direito de se defender, mas precisa renunciar às características ideológicas que fazem com que o país se confronte periodicamente com os povos vizinhos. Tem de se achar uma solução, porque é impossível viver num lugar com essas mortes contínuas e isoladas."

Diante do horror, Karabtchevsky teme a crescente hostilidade aos judeus no Brasil, mesmo em setores progressistas da sociedade. "Tenho receio de que esse antissemitismo se solidifique na cultura brasileira e se torne um elemento propulsor do ódio", afirma.

Sua imagem do país, contudo, ainda transfigura a terra prometida em um país tropical, onde as adversidades seriam superadas pela música. "Penso que o Brasil acolheu os meus pais. A minha gratidão não vai mudar. Eu me sinto brasileiro e amo o Brasil." Não havia outra opção senão reger Heitor Villa-Lobos durante a turnê.

A Opes vai interpretar as "Bachianas Brasileiras nº 4 e nº 9", na viagem, que começa daqui a três semanas no Teatro Solís, em Montevidéo, Uruguai, e segue em excursão pela Argentina, onde a orquestra tocará nas cidades de Rosário, Córdoba e na capital Buenos Aires.

Por ironia, as populares nove "Bachianas Brasileiras", compostas entre 1930 e 1945, datam de um período neoclássico do artista, que não demonstrou, na série, toda a sua vocação modernista.

É uma ambiguidade que incomoda os maestros ao longo do tempo. "Já pensei muito nessa questão, mas Villa-Lobos não poderia ser indiferente às peripécias contrapontísticas de Bach", diz o maestro, citando o gênio alemão que inspirou as "Bachianas". Karabtchevsky diz que Villa-Lobos ainda não é reconhecido ao redor do mundo.

Ao longo de sete décadas de carreira, o regente afirma ter visto momentos de maior projeção, mas sente falta de artistas que levem sua obra para o exterior.

No programa, as peças do modernista brasileiro serão antecedidas pelo "Concerto para Piano nº 2", composto em 1900 pelo russo Serguei Rachmaninoff, com Jean-Louis Steurman como solista. Antes da viagem, a orquestra se apresentará no Theatro Municipal.

Fundada pelo maestro Armando Prazeres, a Opes é, há quase quatro décadas, patrocinada pela Petrobras. À frente do conjunto desde 2003, Karabtchevsky afirma que a prioridade, num primeiro momento, era tornar a Opes conhecida em todo o território nacional, antes de se apresentar em salas de outros países.

São os instrumentistas que definem a administração do conjunto. Nada que tire a autoridade de seu regente. "As minhas ideias sempre são respeitadas sem nenhuma imposição draconiana. Sou meio mal-encarado nos ensaios mesmo, porque às vezes perco a paciência."

Karabtchevsky é de uma época em que nem se cogitava criar uma relação hierárquica menos vertical entre os músicos e o maestro. De todo modo, ele é lembrado como uma influência para as gerações mais jovens. "Tenho muito orgulho de ter sido seu aluno de regência e, a cada vez que o vejo reger, fico mais assombrado com sua energia e tamanha maturidade musical", diz Carlos Prazeres, diretor da Orquestra Sinfônica da Bahia, e filho de Armando.

O violonista Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp de 2010 a 2022, enfatiza a importância de cada maestro exercitar o seu carisma para ganhar diferentes públicos, o que, segundo ele, é um diferencial de Karabtchevsky. "Só Isaac teria carisma bastante para lotar a Sala São Paulo três vezes com uma obra como o 'Gurrelieder', de Schoenberg", diz Nestrovski. O violonista define a personalidade do maestro, se valendo de um dito milenar judaico: "mais vida à vida".