Por: Affonso Nunes

Chico Buarque, o menestrel do Brasil, chega aos 80

Chico Buarque | Foto: Leo Aversa/Divulgação

Há anos Francisco Buarque de Holanda ostenta o título de maior compositor brasileiro vivo. Não bastasse isso Chico Buarque, que completa 80 anos nesta quarta-feira (19), deu ao país uma obra literária premiada que inclui romances e peças de teatro. Artista de múltiplas linguagens, foi também personagem importante numa trama da vida real: a resistência aos anos de chumbo da ditadura militar. Sua arte era sua arte, artes esta que encanta o Brasil até hoje. Parabéns, Chico!

Aclamado por sua genialidade musical e poética e com o dom de abordar temas sociais e políticos de forma profunda e sensível, Chico acumula sucessos, prêmios e reconhecimento internacional. Influenciado por um ambiente familiar rico em cultura, Chico Buarque desde cedo demonstrou vocação para a música e a poesia. Tanto que, aos 15 anos, compôs seu primeiro, "Canção dos Olhos", e aos 17, teve sua "Pedro Pedreiro" gravada por Nara Leão. Em 1966, a canção "A Banda", interpretada por Nara, venceu o I Festival de Música Popular Brasileira (MPB), consolidando Chico como astro de uma cena musical emergente.

Em meio à ditadura militar implantada pelo Golpe de 1964, Chico assumiu uma verve engajada crítica. Em resposta, Chico foi vítima de censura e perseguição. Teve suas músicas proibidas de tocar nas rádios, shows cancelados e liberdade cerceada. A saída foi um período do exílio na Itália.

Mas a distância não o silenciou. Chico continuou compondo e cantando e sua obra, escrevendo livros e peças de teatro, levando sua arte para outros países e denunciando a ditadura brasileira em palcos internacionais. Em 1976, após sete anos de exílio, Chico Buarque retornou ao Brasil.

Apesar da censura, nunca se calou e utilizou de sua criatividade e talento para driblar os censores, criando novas formas de expressar suas críticas e mensagens. Chegou até a criar um pseudônimo chamado Julinho de Adelaide para conseguir escapar da perseguição dos censores. A ideia era perfeita, já que, assinando com outro nome, o músico tinha muito mais chances de ter suas canções aprovadas. Seus grandes sucessos "Jorge Maravilha" ("Você não gosta de mim, mas sua filha gosta") e "Acorda Amor" foram assinados como sendo de autoria de Julinho.

Em algumas canções, recorreu à linguagem indireta, metáforas e simbolismos para abordar temas sensíveis sem ser diretamente censurado. Em outras, compôs canções de amor e humor que, à primeira vista, pareciam inofensivas, mas que escondiam críticas sociais em suas entrelinhas. Canções como "Apesar de Você", "Cálice" e "Angélica" se tornaram hinos da resistência.

A discografia de Chico abrange hoje um total de 51 álbuns, incluindo discos de estúdio, registros de shows ao vivo e trilhas sonoras para teatro e cinema.

 

Um dramaturgo social

O jovem Chico Buarque (E) acompanha os ensaios de 'Roda Viva', em 1968 | Foto: Reprodução

Mestre da canção popular, Chico Buarque deixou também sua marca como dramaturgo renomado. O artista escreveu quatro peças de teatro, explorando diferentes estilos e temáticas.

"Roda Viva" (1967), a primeira delas, era uma alegoria política sobre a tortura e a repressão durante a ditadura militar, com elementos de suspense e humor negro. Foi escrita no fim de 1967 e estreou no Rio de Janeiro no início do ano seguinte, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa (1937-2023). Durante sua temporada em São Paulo, um grupo de cerca de vinte pessoas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), invadiu o Teatro Ruth Escobar, espancou os artistas e depredou o cenário. O espetáculo ainda voltaria a ser encenado em Porto Alegre e tornou-se uma das montagens teatrais mais signficativas daquela década.

Seis anos depois, Chico escreveria "Calabar", um drama histórico que reinterpreta a história de Domingos Calabar, herói negro da resistência à colonização holandesa no Brasil. Aqui, o elemento histórico servia de pano de fundo para denunciar a ditadura militar.

Outra metáfora viria em "Gota d'Água" (1975), uma tragédia moderna inspirada em "Medéia", obra clássiica de Eurípedes, que aborda temas como o amor, a traição, o ciúme e a violência contra a mulher.

Talvez a mais popular das peças e Chico tenha sido "Ópera do Malandro" (1978), comédia musical inspirada na "Ópera dos Três Vinténs" de Bertolt Brecht, que retratava a vida marginalizada no Rio de Janeiro dos anos 1940 com humor, crítica social e trilha sonora música soberba.

A dramaturgia de Chico Buarque é um reflexo do engajamento social e político do artista na música, abordando temas relevantes para a sociedade brasileira, como a repressão, a desigualdade social, a violência e o machismo.

 

No cinema, foi compositor, roteirista e ator

Nara Leão, Chico Buarque e Maria Bethânia em 'Quando o Carnaval Chegar' (1972), de Cacá Diegues | Foto: Acervo/Cinemateca Brasileira

Além do teatro, Chico Buarque tem parte de sua trajetória entrelaçada com o cinema, para o qual escreveu roteiros, trilhas sonoras e até atuou como ator. Em 1966, mesmo ano em que lançou seu álbum de estreia e conquistou o Festival da Música Popular Brasileira, o artista fez seu primeiro trabalho para o cinema, compondo uma melodia para o filme "O anjo assassino" (1966), de Dionísio Azevedo.

A trilha seguinte foi em "A Semente do Adeus" (1975). Chico compôs a trilha completa do filme, incluindo "O Que Será". Em "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976) - adaptação do diretor Bruno Barreto para o romance homônimo de Jorge Amado (1912-2001) -, a canção "O Que Será (De Você)" conquistou o Oscar de Melhor Canção Original, consagrando o músico internacionalmente.

Chico voltaria a conviver com trilhas do universo de Jorge Amado, dividindo com Milton Nascimento e Tom Jobim (1927-1994) as canções que embalaram "Gabriela, Cravo e Canela" (1983), considerada uma das mais belas trilhas sonoras da MPB.

Em "Terra Estrangeira" (1995), os diretores Walter Salles Jr. e Daniela Thomas incluíram a canção "Tatuagem", originalmente composta para a peça "Calabar - O Elogio da Traição", que se tornou um dos principais sucessos do filme.

Como roteirista, Chico Buarque co-escreveu "Os Saltimbancos Trapalhões" (1981), musical infantil estrelado pelo famoso grupo humorístico e uma das grandes bilheterias do cinema brasileiro.

Em 1986, Chico dividiria com Ruy Guerra e Orlando Senna o roteiro que adaptou sua peça "Ópera do Malandro" para o cinema, com a direção de Guerra que, obviamente, recupera sua trilha sonora original.

Além dos roteiros, a colaboração de Chico Buarque com o cinema inclui trabalhos como ator. Estreou interpretando a si mesmo em "Garota de Ipanema" (1967), de Leon Hirszman. "Achava que poderia ser ator de cinema, mas aí cresci e desisti. Sou um péssimo ator. Geralmente, quando me chamam para atuar é para interpretar a mim mesmo ou a uma versão de mim mesmo", disse ao documentarista Roberto de Oliveira.

Seu principal personagem nas telas foi Paulo, de "Quando o Carnaval Cchegar" (1972), de Cacá Diegues. O papel era, de fato, uma versão de Chico. O longa tinha ainda no elenco Hugo Carvana (1937-2014), Nara Leão (1942-1989) e Maria Bethânia. Na trilha sonora, o filme trazia canções como "Mambembe", "Quando o Carnaval Chegar", "Partido Alto" e "Bom Conselho".

Seus demais trabalhos como ator estão nos longas "Vai Trabalhar, Vagabundo II" (1991), de Hugo Carvana; "O Mandarim" (1995), de Júlio Bressane; "Ed Mort" (1997), de Alain Fresnot; e "Água e Sal" (2001), da cinesta portuguesa Teresa Villaverde.

 

Um autor que honra a língua portuguesa

Chico em leitura de trechos de 'O Irmão Alemão' em vídeo promocional da Companhia das Letras | Foto: Reprodução YouTube

Chico Buarque é também um escritor de excelência, agraciado com o Prêmio Camões, um dos mais importantes da língua portuguesa que avalia o conjunto da obra de diversos escritores de diferentes países lusófonos. Conquistou ainda o Jabuti, a maior premiação brasileira; e o Prêmio Literário José Saramago. Seus livros foram traduzidos para diversos idiomas e publicados em vários países, consolidando seu status como um autor de alcance internacional.

Sua produção literária começa na juventude. Ainda adolescente, publicou suas primeiras crônicas no "Verbâmidas", jornal do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, onde o artista carioca viveu na adolescência. Nesta fase revelou talento na escrita curta (contos e crônicas) publicadas em jornais como O Estado de S.Paulo e O Pasquim, o semanário de humor que fez mordaz oposição à ditadura militar.

Em 1966, publicou no jornal O Estado de S.Paulo o conto "Ulisses", incorporado depois no primeiro livro chamado "A Banda" (1966), que trazia os manuscritos das primeiras canções.

Em 1974 sai a novela pecuária "Fazenda Modelo", uma alegoria crítica da sociedade brasileira durante a ditadura militar e que guara alguma similaridade com a REvolução dos Bichos", do britânico George Orwell (1903-1950). Em 1979 é editado "Chapeuzinho Amarelo" e em 1981 "A Bordo do Rui Barbosa", poema da década de 60 ilustrado por Vallandro Keating.

A partir do início dos anos 80 Chico passa a alternar suas produções musicais com a literárias e um romance marcante dessa fase é "Estorvo" (1981), "uma peregrinação alucinada em demanda das raízes perdidas, através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão" nas palavra do crítico José Cardoso Pires. A obra foi o primeiro livro de Chico a ser adaptado para o cinema, sob a direção do amigo e parceiro Ruy Guerra.

A obra seguinte seria "Benjamim" (1995). É um livro um tanto cinematográfico, como diz o autor em seu site oficial: "De certa maneira, as imagens foram me guiando". Não por coincidência, o obra também ganharia as telonas em adaptação feita pela diretora Monique Gardemberg em 2004.

Lançado em 2003, o romance "Budapeste" ganhou nova adaptação para cinema, desta vez pelo olhar do cineasta Walter Carvalho, em 2009. Para o colega Caetano Veloso, é "talvez o mais belo dos três livros da maturidade de Chico. 'Budapeste' é um labirinto de espelhos que afinal se resolve, não na trama, mas nas palavras, como poemas".

"Leite Derramado" (2009) é uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos.

Aos 22 anos, Chico Buarque descobriu que tinha um irmão alemão nunca antes mencionado. Aos 70, publicou "O Irmão Alemão", livro onde ficção e realidade se misturam.

Seu livro seguinte é "Essa Gente" (2019), o primeiro de Chico após a consagração com o Prêmio Camões. Há alguns pontos de contato entre o autor e seu protagonista, o escritor Manuel Duarte. A obra recebeu comentários elogiosos do colega Salman Rushdie, escritor e ensaísta britânico de origem indiana muçulmana: "A imaginação literária de Chico Buarque é bela e peculiar. Ler sua ficção é sempre um prazer".

Em sua obra mais recente, "Anos de Chumbo" (2021), Chico Buarque viaja no tempo e reúne contos escritos ao longo de sua carreira, explorando temas como a censura, a repressão e a memória.

A Companhia das Letras vai lançar, ainda este ano, o novo livro de Chico Buarque, que agora assina "Bambino a Roma", autoficção em que narra o fim de sua infância na Itália. Antes mesmo do exílio, a família Buarque viveu na capital italiana por cerca de dois. Seu pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, era professor de uma universidade na cidade. Nesse período, Chico aprendeu o italiano e o francês e essa proximidade com o país acabou sendo determinante na hora de escolher um local para se exilar nos anos de chumbo.

A polêmica do Camões

A conquista do Prêmio Camões por Chico Buarque colocou o autor no centro de uma polêmica que criou um certo atrito entre autoridades brasileiras e portuguesas. Depois de quatro anos de espera, o cantor, compositor e escritor recebeu em abri do ano passado em Sintra (Portugal), o mais importante prêmio da literatura de língua portuguesa.

Um dos motivos da demora se deveu à recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em assinar a documentação necessária para que o artista recebesse o diploma em 2019. A entrega também acabou prejudicada pelo confinamento imposto pela pandemia de covid-19.

Em sua fala ao receber a premiação, em um salão nobre no Palácio Nacional de Queluz, Buarque, visivelmente emocionado, fez alusão a Bolsonaro, mas não o citou nominalmente. "O ex-presidente (Bolsonaro) teve a rara fineza de não sujar o diploma de Camões, deixando o espaço em branco para a assinatura do presidente Lula", afirmou ele na cerimônia que contou com a presença do presidente brasileiro e de sua ministra da Cultura, Margareth Menezes.