Com um faturamento estimado em US$ 438 milhões em apenas três dias em cartaz, "Deadpool & Wolverine" periga se tornar o maior sucesso do ano em circuito, desafiando a hegemonia de "Divertida Mente 2", o atual campeão do ano (com US$ 1,4 bilhão de receita), apoiado em participações especiais de peso. Uma delas é feita por um ícone das lutas antirracistas sem o qual o império Marvel jamais teria conquistado as telonas: Wesley Snipes. Ele aparece ao lado de Ryan Reynolds e Hugh Jackman retomando a figura do caçador de vampiros Blade. Faz até uma piada com o potencial regresso do personagem com um outro ator: Mahershala Ali.
Pouco ou quase nada se fala sobre a conturbada transposição do super-herói vampírico Blade para a Disney com Mahershala, ganhador do Oscar de Melhor Coadjuvante em 2017 (por "Moonlight: Sob a Luz do Luar") e em 2019 (por "Green Book: O Guia"). Uma profusão de problemas de bastidores, incluindo negociações, atrasou o projeto. No entanto, a primeira (e muito bem-sucedida) transposição do vigilante para as telas, com Snipes, comemorou, faz pouco, os 25 anos de seu lançamento em estado de graça.
Hoje, com, o êxito de "Deadpool & Wolverine", veículos de imprensa especializada tecem loas sobre o longa-metragem de 1998 que ganha, ano após ano, o reconhecimento de ser a pedra fundamental da Marvel nas telas. Sua onipresença na grade da HBO Max ressalta a relevância da franquia levada às telas entre o fim da década e 1990 e 2004. Fora isso, a Panini acaba de despejar nas bancas "Midnight Suns", no qual o personagem se une ao Wolverine e a mais uma turma de superpoderosos para combater agentes das trevas.
Orçado em US$ 45 milhões, "Blade: O Caçador de Vampiros" ("Blade", 1998) é uma adaptação para as telas das aventuras de um personagem de histórias em quadrinhos (HQs) lançado pela editora Marvel Comics na década de 1970, sem jamais ter alcançado, aos olhos do público leitor (apelidado de "marvetes") a mesma recepção dos vigilantes mais vendidos da empresa, como o Homem-Aranha, o Hulk ou o Capitão América. Contudo, sua transposição para o cinema, dirigida pelo técnico de efeitos visuais (então como pouca experiência como realizador) Stephen Norrington, virou uma coqueluche comercial na venda de ingressos, em todo o planeta, faturando US$ 131,2 milhões em salas de exibição. Naquela época, o fracasso comercial de "Batman & Robin" (1997), de Joel Schumacher (1939-2020), cassou a validade de qualquer projeto ligado a quadrinhos em Hollywood, decretando o filão como um convite ao fiasco. No entanto, a persistência de um ator mudou o que se anunciava como um paradigma. Wesley Trent Snipes (um norte-americano nascido em Orlando, Flórida, em 31 de julho de 1962) sonhava em levar às telas os gibis (jargão brasileiro para quadrinhos) do Pantera Negra, primeiro justiceiro mascarado negro a ganhar notoriedade no mercado editorial, em escopo global, a partir de sua criação, por Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-1994), em julho de 1966. Detentora dos direitos autorais do personagem a Marvel negou o Pantera a Wesley, por acreditar que aquele era um momento da História avesso a versões de tramas ligadas a comics (termo internacional usado para designar narrativas gráficas com balões), o que significaria o desperdício de uma grife tão icônica quanto a do personagem que ele buscava, definido como o Rei de Wakanda (país fictício). A editora ofereceu-lhe, como compensação, a escolha de qualquer outro personagem negro que quisesse. Diante do apelo que criaturas vampíricas possuíam no imaginário da cultura pop, sobretudo depois de "Drácula de Bram Stoker" ("Dracula", 1992), Snipes escolheu Blade e investiu o que tinha em sua caracterização. Usou todos recursos que possuía em sua recém-fundada produtora, Amen Ra Films, para levantar o projeto, contando com o suporte da distribuidora (à época de pequeno porte) New Line, que, à mesma época se debruçava sobre a feitura da trilogia "O Senhor dos Anéis" (2001-2003).
Em depoimento ao jornal O Globo, o ator explicou não imaginar o que estava por vir, explicando "quando selei aquele acordo não imaginava que um dia veria alguém da minha cor e não um europeu branco como Schwarzenegger naquele lugar, o que me fez repensar minha vida e o papel político de um filme".
O que o astro classifica como "papel político" se refere ao fato de ele ter dado ao cinema (que então contabilizava 103 anos de atividade) seu primeiro super-herói negro em condição de protagonismo e com potência para arrastar multidões às salas de projeção.
Seu vilão, Deacon Frost, um vampiro do Mal, vivido pelo ator Stephen Dorff, impressionou a crítica. Complementado por duas continuações, uma de 2002, dirigida por Guillermo Del Toro, e uma de 2004, realizada por David S. Goyer, "Blade: O Caçador de Vampiros" usou de seu espectro inclusivo para permitir que a indústria abrisse veios para explorar as HQs de forma maciça (e massiva), adaptando personagens até então nunca retratados em produtos audiovisuais. O Homem de Ferro, que só havia aparecido em desenhos animados dos anos 1960, foi um deles, e acabou transportado para as telas numa superprodução de 2008 cujo faturamento astronômico (custou US$ 140 milhões e arrecadou US$ 585,8 milhões) levou a Marvel a abrir seu próprio estúdio de cinema, hoje anexado à Disney. Mas Snipes não seguiu nos holofotes, pelo menos não nesses, do sucesso. No auge de sua popularidade, desejoso de investir em outras franquias, ele foi acusado de fraudar o imposto de renda e sonegar dados em sua declaração, sendo condenado a três anos de prisão, o que fez sua carreira naufragar. Após a devastação de sua imagem, ele se reergueu com "Atraídos Pelo Crime" ("Brooklyn's Finest", 2009), de Antoine Fuqua, voltando a atuar na trupe de Spike Lee (em "Chi-Raq", de 2015) e emprestando a voz a uma animação Marvel ("Garota da Lua e o Dinossauro Demônio", 2023). Sua trajetória de sua ascese, queda e redenção são emblemas de uma engrenagem que mercantiliza subjetividades.