O poeta e o (seu) tempo

Gilberto Gil dá adeus à rotina de shows em turnê agendada para o próximo ano dando atenção a um novo tempo com a música

Por Claudio Leal (Folhapress)

'Tempo Rei', uma das canções mais emblemáticas de Gilberto Gil, dará nome à turnê de seu adeus aos palcos para dedicar-se e composição e shows esporádicos

O tempo vai reger a turnê de despedida de Gilberto Gil por nove capitais brasileiras no próximo ano. Do álbum "Raça Humana", de 1984, a canção "Tempo Rei" nomeia a série de shows que marcará seu adeus à rotina de viagens e shows alongados, como faz há quase 60 anos. Sorridente na chamada de vídeo, o compositor diz que não se angustia com a redução do ímpeto de palco.

"Não creio que seja tão difícil, porque a vida é corpo. O complexo vivente já indica que isso é razoável, porque estou mais velho, não tenho tanto élan, tanta sede, tanta volúpia como antes. Já tenho um andar para perceber que vai dar para ficar mais quieto", diz. "Minha inserção no mercado já é mais branda, então tenho que pensar que não preciso acelerar mais. Concluímos que é bom dar esse 'bye-bye'."

De março a novembro de 2025, Gil vai percorrer arenas e estádios de Salvador, Rioo, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, Belém, Fortaleza e Recife. Em breve serão anunciadas ainda datas nos Estados Unidos e Europa. A turnê estreará na Fonte Nova, em Salvador, onde o artista baiano fez uma apresentação histórica com o jamaicano Jimmy Cliff, em 1980. "Eu e a minha ancestralidade com relação a mim mesmo", diz Gil, sobre a abertura na Bahia.

"Tempo Rei" vai virar "um leitmotiv" do show com direção musical dos filhos Bem e José Gil. A escolha corteja um tema central na obra do tropicalista. Em suas canções reflexivas, o mundo sobrevive à morte individual, o finito estende-se infinito, o amor vai além do fim do amor e a vida carnal esboça a eternidade.

A música responde à "Oração ao Tempo" de Caetano Veloso, seu irmão artístico, mais existencialista do que Gil ao professar que, ao sair do círculo do tempo, "não serei nem terás sido". O tempo segundo Gil transforma "as velhas formas do viver".

A despedida não o afastará de shows pontuais e do ritual de compor e gravar. No Rio ou Salvador, o violão sempre permanece em seu campo visual. Gil embaralha lazer, meditação e trabalho nos exercícios instrumentais, e o rigor caseiro pouco difere daquele externado nas minuciosas passagens de som e no hábito de ensaiar outra vez o repertório no camarim, perto de ser chamado ao palco.

"Tocar em casa e especular sobre as canções e os caminhos musicais, esse xodó e esse afeto com o instrumento, permanecem. Aliás, uma das razões é tentar ganhar mais tempo para essa dimensão doméstica da musicalidade. Uma música mais tranquila, mais meditativa, mais divagante."

Olhar sobre a finitude

Aos 82 anos, o olhar realista sobre a finitude o ajudou a anunciar a última turnê. "As relações corpo, alma, mente, inteligência, respiração, pulmonaridade, força muscular, todas essas coisas convergem para uma aquietação maior", diz o compositor.

Na banda, a presença de filhos e netos o cobre de afeto familiar. Nos diálogos dele com filhos e netos, é perceptível o gesto de isenção ao transmitir saberes musicais e fazer ponderações críticas. "Não catequizei nenhum filho para que fossem torcedores dos meus times. Na música também faço isso. Evidente que tem a minha presença permanente ali tocando, cantando, ouvindo coisas. Há uma saturação de música no ambiente, o que leva naturalmente à percepção dos talentos por parte deles. Mas catequese eu não exerço."

O repertório será discutido com sua equipe, mas Gil pensa em acolher sugestões de fãs e amigos. Ele antecipa a ideia de homenagear seus mestres Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga. Em casa, vem tocando com frequência "Marina", de Caymmi, desconstruída em "Realce", de 1979. Com "Toda Menina Baiana" e "Não Chore Mais" - versão de "No Woman, No Cry", de B. Vincent -, além da canção-título, o álbum estimulou sua energia de palco e o mergulho na extroversão.

As gravações em voz e violão podem crescer depois do giro de despedida. "Gil Luminoso", de 2006, produzido por Bené Fonteles e reeditado em LP duplo pela Rocinante/Três Selos, demonstra seu poder expressivo em registros essencializados.

"Uma das situações domésticas do violão é o cultivo particularizado da música, com releituras e releituras, basicamente a partir da voz e do violão. Então, acredito que mais adiante haja muito de revisitas, releituras, rearranjos", diz ele.

O apetite do ser político e pensador do mundo tecnológico também não sofreu mudanças. Gil segue de olho. "O ciberespaço, as redes, a internet, acrescentaram elementos novos à relação entre a sociedade e os indivíduos, as sociedades e suas dinâmicas, seus governos e sistemas. Parece consensualmente aceita a ideia de que houve uma exacerbação na polarização, com aquilo que já nem se pode mais chamar de esquerda e direita, mas de um lado e outro, sempre, e ali adiante o mesmo lado do outro lado", afirma Gil, que já foi ministro da Cultura de Lula e agora é membro da Academia Brasileira de Letras.

O compositor diz acreditar que a regulação do ambiente digital aguarda decisões planetárias. "Aparece em mim cada vez um sentimento maior da urgência do governo mundial. Era utopia há 20 anos e agora precisa se configurar como realidade. Cada país fazer a sua pequena legislação não vai dar conta dos processos mundiais."

O arauto das tecnologias sorri quando lembrado de que não parece ser o mesmo homem de uso comedido de laptop e celular. "Caetano me diz: você é um apologista da internet, mas não responde aos meus emails."