Por: Affonso Nunes

Um tesouro redescoberto

A genialiade do pianista e João Carlos Assis Brasil, morto em 2021, é relembrada neste "Ao Vivo 1994", registro histórico de sua apresentação com Zé Renato e banda na Sala Cecília Meireles há 30 anos | Foto: Antônio Filho/Divulgação

Além de seu trabalho no Boca Livre, recém retomado, Zé Renato é dono de uma discografia interessante. Mesmo tendo verve autoral expressiva, esse cantor e compositor capixaba de nascimento e carioca por opção, é um intérprete de natureza ímpar. Seus álbuns em tributo a Silvio Caldas (1994), Zé Kéti (2001), Paulinho da Viola (2019) e Orlando Silva (2021) mostram um cuidado meticuloso em cada nota alcançada por seu timbre tão peculiar. Ao receber de sua irmã e produtora, Memeca Moscovich, os arquivos de seus mais novo álbum precisei de, pelo menos, dois dias para uma audição detalhada, afim de não perder cada nuance, pois não é todo dia que te enviam uma obra-prima.

O disco em questão é "Ao Vivo 1994" e reúne, de forma inédita, Zé Renato e o pianista João Carlos Assis Brasil (1945-2021), fruto de uma apresentação realizada em 28 de outobro de 1994 na Sala Cecília Meireles pelo projeto Sexta Básica que promovia concertos a preços populares. Zé e João Carlos ainda dividiriam o palco com instrumentistas de renome como Marcos Ariel (piano), Omar Cavalheiro (baixo) e Marco Pereira (violão). Trocando em miúdos, de básico não tinha nada.

Esse time executou um repertório especialíssimo que pinçou clássicos de nosso cancioneiro popular e temas internacionais que marcaram as trajetórias do cantor e do pianista.

O álbum que chega agora ao conhecimento do público nas plataformas digitais, pelas cuidadosas mãos do selo Discobertas (do pesquisador Marcelo Fróes) é um achado. Foi vertido de uma fita cassete gravada na mesa de som da casa de espetáculos e masterizado sem qualquer corte ou edição, o que seria uma heresia.

"Quando Zé Renato deixou comigo, há tempos, uma mala de fitas e CDs de todos os tipos, eu sabia que encontraria algumas maravilhas. Deste baú veio, em 2021, o disco "Orlando Mavioso", lançado pelo Discobertas, com um show impecável dedicado ao repertório de Orlando Silva. Seria difícil imaginar um encontro raro como este, adormecido em uma fita cassete por tantos anos", conta o pesquisador e dedicado produtor Maurício Gouvêa, um braço direito de Zé Renato.

 

'Adorei ouvir isso tantos anos depois'

Zé Renato: 'Ainda que eu perceba naquele meu timbre algo de um menino, vejo que eu enfrentei desafios melódicos grandes como em Serra da Boa Esperança' | Foto: Divulgação

"Eu adorei ouvir isso tantos anos depois. As performances estão muito boas, todos muito entrosados no palco, com um repertório que representa bem a canção brasileira. Sem contar a qualidade de gravação excelente deste show. Ainda que eu perceba naquele meu timbre algo de um menino, vejo que eu enfrentei desafios melódicos grandes como em "Serra da Boa Esperança (Lamartine Babo)", comenta Zé Renato, ao analisar sua performance.

Se o cantor afirma isso quem somos nós para contestar? Modéstia à parte, Zé Renato esteve impecável naquela noite como se pode coneferir a cada faixa. Naquele 1994, o artista acabava de lançar o disco "Arranha-Céu", o tributo Silvio Caldas, o que explica parte do repertório daquela noite na prestiogiosa sala de concertos da Lapa.

Seu parceiro de noite, o virtuoso João Carlos Assis Brasil, um pianista de formação erudita e profundamente inspirado por Villa-Lobos seguia os passos do mestre e se aproximava cada vez mais da música popular acompanhando artistas como Maria Bethânia, gravando álbuns com Ney Matogrosso e Olívia Byington. Naquele 1994 ele fez diversas apresentações em duos com Silvia Massari, Claudio Botelho e Alaíde Costa.

Estes momentos particulares das carreiras de ambos explicam boa parte do repertório escolhido para esta apresentação, que mescla com sabedoria o que Zé Renato e João Carlos estavam fazendo naquele ano", destaca Maurício Gouvêa, o primeiro ouvinte dessa obra de arte que resiste ao tempo30 anos depois.

De "Arranha-Céu" Zé Renato trouxe, além da faixa-título, composta por Silvio Caldas e Orestes Barbosa, "Maringá" (Joubert de Carvalho), "Faceira" (Ary Barroso), "Chão de Estrelas" (Silvio Caldas e Orestes Barbosa), "Mulher" (Custódio Mesquita e Sadi Cabral) , "Serenata do Adeus" (Vinícius de Moraes) e "Minha Palhoça" (J. Cascata), algumas delas com a banda completa e outras tendo apenas a voz de Zé e o piano de João Carlos, na emocionante execução da "Serenata do Adeus".

"Sem Você", clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, foi uma sugestão de João Carlos para o show. Era a primeira vez que Zé Renato a interpretaria. Momentos solo do pianista trazem vocalizes preciosos de Zé Renato como em "Lenda do Caboclo" (Heitor Villa-Lobos) ou "Elba", um dos três temas de Victor Assis Brasil - irmão gêmeo de João Carlos, morto em 1981 - que ganha um tributo de João Carlos com outras duas composições: "Blues" e "Waltzing".

Completam o repertório delicadezas como o "Prelúdio das Bachianas" (Villa-Lobos), "Promessa" (Custódio Mesquita e Evaldo Ruy), "Pedra Quem Rolou (Pedro Caetano), um feliz medley com "A Saudade Mata a Gente" (Antônio Almeida e João de Barro) e "Toada" (Zé Renato, Claudio Nucci e Juca Filho) e outro (estupendo!) reunido "Sweet And Lowdown" (George Gershwin), "Someone To Watch Over Me" e "Our Love Is Here To Stay" (George e Ira Gershwin).

"Lembro do ensaio com ele, da sua generosidade em trazer canções que até então eu nunca havia interpretado. Artística e pessoalmente foi muito importante estar com ele, uma experiência estimulante e desafiadora", recorda Zé Renato.

Os demais músicos também protagonizam momentos sublimes como nos duos de Zé Renato com o violão de Marco Pereira em "Arranha-céu" (faixa que abre o show) e com o contrabaixo acústico de Omar Cavalheiro em "Chão de Estrelas".

Irmão mais novo de João Carlos e Vitor, Paulo Assis Brasil considera a audição deste show um verdadeiro acontecimento: "O que dizer de João Carlos Assis Brasil e Zé Renato juntos? Apenas e tão somente a generosidade que esses dois artistas dedicam a música, entrelaçando seus sentimentos. Nós, o público, somos os grandes beneficiados desse encontro que surge resgatado 30 anos depois".