Por Cláudia Chaves
Especial para o Correio da Manhã
"Foi num samba de gente bamba..." Parte dessa letra pouco aparece em nosso teatro. Ainda que a tradição, notadamente do Rio de Janeiro, com as vedetes cantando marchinhas e samba, no teatro de revista, nas operetas, nosso maior ritmo nacional, nossa arte modelo exportação pouco aparece na cena teatral. Atualmente, ainda se tem um sério antagonista, a sacralização dos musicais da Broadway.
A receita de samba e teatro tem sido uma manifestação das mais ricas da alma brasileira: o falar absolutamente brasileiro sem pretensões, a dança que é única e, é calro, as melodias campeãs são uma enorme contribuição a uma arte de cena capaz de divulgar os maiores valores de nossa brasilidade com o enorme talento de nossos artistas.
Quando o grupo do Teatro Oficina reencenou na Nenê de Vila Matilde "Os Sertões", na Ala Canudos da escola, no enredo Da Revolta dos Búzios à atualidade foi um fenômeno semelhante a ala do mendigos, totalmente formada por artistas, no emblemático enredo Ratos e urubus, larguem minha fantasia!, dirigidos por Amir Haddad.
Essas duas passagens confirmam o que o mestre Amir afirma sobre o samba e suas festas estão na raiz da teatralidade brasileira. "O carnaval está na origem de toda a teatralidade". É assim que Amir Haddad, fundador do grupo Tá na Rua, sediado no Lapa, define a relação entre carnaval e teatro.
Édio Nunes que, com Marcelo Serrado, criou a roda Samba de Vinil - projeto que trouxe clássicos do samba brasileiro e com o intuito de trazer alegria e irreverência com as músicas que marcaram gerações e que são inesquecíveis até hoje no samba brasileiro - nos fala sobre o seu trabalho em "Professor Samba: uma homenagem a Ismael Silva". "Ismael chega na minha vida, trazendo todas as referências e paixões que tenho pelo samba. Idealizo três corpos negros, que através do ícone, vão traçando a sua própria história. Uma dádiva para um artista negro, reverenciá-lo."
No premiado projeto Grandes Músicos para Pequenos - com texto de Pedro Henrique Lopes e direção de Diego Morais - foi com "A Menina do Meio do Mundo", sobre Elza Soares, que foram à raiz de nossas origens.
"O samba é um patrimônio nacional e está no DNA do brasileiro como parte fundamental da formação cultural", dia Diego. "E nos últimos anos temos acompanhado a identidade do povo brasileiro tomar conta das narrativas e da dramaturgia que se encontram nas salas de teatro, por isso tem sido importante e muito bonito de ver histórias de sambistas, espetáculos que enaltecem o samba e sua criação, grandes musicais, teatros de prosa sobre ícones do samba, espetáculos para infância, até nome de salas teatrais que surgem e perpetuam a relação do samba com o nosso povo", completa.
Em "Lecy na Palma da Mão" há uma outra perspectiva. Menos biográfica e mais reflexiva sobre a presença de mulher no samba. O enredo e o texto e a pesquisa do especialista em samba Leonardo Bruno viram teatro pela ótima adaptação dramatúrgica de Lorena Lima, Luiz Antônio Pilar e Luiza Loroza. Em vez de usarem o lugar-comum de biografias, com ordem cronológica, o que vemos são momentos importantes, emblemáticos na formação e construção do personagem, com contornos que despertam total interesse.
Veronica Bonfim que faz o papel da mãe da Lecy relembra com carinho o trabalho. "Leci sempre foi uma artista atemporal e extremamente corajosa e coerente com os valores que sua Mãe Dona Lecy com Y lhe ensinou. Sua arma sempre foi o samba e a palavra, sua bandeira de luta por todas as chamadas minorias. Através da arte e como parlamentar, ela se tornou um ícone do samba e a voz do povo brasileiro."
Foi em "Otelo da Mangueira" que a visão da capacidade de se colocar brasileiro uma peça emblemática que Gustavo Gasparini trouxe a sua paixão pelo samba, pelo desfile (é primoroso passista da Estação Primeira), que pode ser afirmar que teatro e samba são o melhor do que podemos ter em arte popular, entretenimento e teatro na veia.
"Otelo da Mangueira" foi citado pela crítica Bárbara Heliodora, em seu livro "Por que ler Shakespeare?", como uma das melhores adaptações a partir do universo de Shakespeare, juntamente com as obras de Verdi, Prokofiev, Mendelsshon, Orson Welles, Martins Pena e Leonard Berstein. Gustavo foi indicado, pela primeira vez, ao Prêmio Shell com melhor autor. "Otelo da Mangueira foi o meu primeiro texto. Foi um enorme sucesso. Viajamos por todo o Brasil com críticas e plateias lotadas. Posso dizer que foi um divisor de águas na minha carreira", diz.
É nessa constante presença, desde Grande Otelo cantando os sambas de Ari Barroso no teatro de revista, com Tom e Vinicius fazendo de Orfeu a primeira ópera popular, com Opinião, Arena Conta Zumbi e até mesmo Roda Viva com os sambas de Chico Buarque, podemos dizer que o samba se expressa com todo o rebolado que merece na dramaturgia brasileira.