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A madrinha e os tesouros baianos

Detalhe da capa do DVD, projeto que Beth acalentou por anos | Foto: Divulgação

Na semana em que se celebra o Dia Nacional do Samba nada mais justo do que reverenciar um dos projetos mais belos, completos e ambiciosos da MPB das últimas duas décadas. Trata-se do álbum "Beth Carvalho Canta o Samba da Bahia - Ao Vivo", resultado de um show que reuniu pela primeira vez um painel de sambas representativos de autores baianos desde os primórdios do gênero, com direito à participação de várias gerações de artistas da terra. O trabalho, finalmente, chega às plataformas digitais.

A sambista teve a proeza de congregar um elenco inédito, jamais antes ou depois reunido, incluindo seus contemporâneos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, outros revelados nos anos 1980 e 90, como Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Margareth Menezes e o grupo Olodum, sem esquecer o veteraníssimo Riachão, a então novata Mariene de Castro ou o inventor da guitarra baiana Armandinho Macedo.

Com seu espírito agregador, a madrinha do samba - responsável por revelar gerações de novos sambistas - também levou ao palco nomes da música baiana mais conhecidos por suas obras de compositores, como Edil Pacheco, Nelson Rufino, Roberto Mendes e Walter Queiroz, além de Danilo Caymmi, carioca, representando o pai Dorival, a quem o trabalho é dedicado, por ter imortalizado personagens, paisagens, cenas, festas e o próprio sotaque musical da Bahia em sua clássica obra.

O projeto foi gravado no legendário Teatro Castro Alves, em Salvador, nos dias 22 e 23 de agosto de 2006, sendo registrado para sair em DVD, dirigido por Lula Buarque de Hollanda, da Conspiração Filmes. E 18 das 30 faixas foram lançadas também num CD ao vivo. Ambos chegaram ao mercado em novembro de 2007 pela EMI (atual Universal Music) em parceria com o selo da cantora - Andança, que leva justamente o nome de seu hit inicial.

Este projeto já era acalentado pela cantora desde os anos 1990. Sua ideia originalmente era fazer um disco de sambas de roda do Recôncavo Baiano, para o qual chegou a pesquisar pérolas do gênero com o compositor Edil Pacheco e filmar em Santo Amaro da Purificação. Contudo, não foi adiante.

Na década seguinte, de 2000, já com a mídia DVD em vigor (os primeiros títulos musicais editados saíram em 1999), o projeto cresceu e só foi viabilizado graças ao prestígio da cantora e o empenho do então empresário de Beth, Afonso Carvalho. E bota empenho nisso, pois era uma aventura cara e necessitava de grandes patrocinadores. Pois quando as datas de gravação das duas dezenas de artistas convidados já estavam marcadas, o dinheiro arrecadado se mostrou insuficiente, e ele partiu feroz para conseguir o restante, atrasando-o em três meses, mas a força da ideia era tão grande que, enfim, tudo se realizou.

Levado ao tradicional palco do Teatro Castro Alves, com cenários de Luiz Henrique Pinto (o primeiro, inspirado na arte do pintor Carybé, e o segundo nos orixás do escultor Tati Moreno expostos ao ar livre no famoso Dique do Tororó), arranjos e direção musical de seu velho escudeiro, o maestro Ivan Paulo, Beth caprichou no repertório. Selecionou com a ajuda do diretor geral e autor do roteiro, Tulio Feliciano, um cancioneiro representativo de 30 músicas, entre sambas clássicos locais, outros mais conhecidos só naquele Estado e ainda outros já um pouco esquecidos, mas sem levar em conta a velha pesquisa de raridades que havia feito no passado, já que achou por bem mostrar aqueles que de alguma forma fizeram história e estavam no inconsciente coletivo do público.

Assim, canções emblemáticas de alguns dos maiores astros baianos ("Samba da minha terra", "João Valentão" e "Maracangalha", de Dorival Caymmi; "É de Manhã" e "Desde que o Samba é Samba", de Caetano; "Mancada", de Gil) se misturavam a outras de autores menos conhecidos do grande público, mas que foram popularizadas originalmente pelas vozes da paraense Fafá de Belém ("Filho da Bahia", de Walter Queiróz, que a lançou em 1975, e "Siriê", de Edil Pacheco e Paulinho Diniz), da maranhense Alcione ("Ilha de Maré", de Walmir Lima e Lupa) e das conterrâneas Maria Bethânia ("Hora da razão", de Batatinha e J. Luna, e "Agradecer e abraçar", de Vevé Calazans e Gerônimo) e Gal Costa ("Raiz", de Roberto Mendes e J. Velloso). A propósito, a ausência de Gal neste elenco se deveu ao fato de ter tido obrigações no Terreiro do Gantois nas datas de gravação.

O show foi aberto pelo carnavalesco "Quem Samba Fica", de Tião Motorista e do carioca Jamelão, com versos extras de Arlindo Cruz. E teve momentos de grande comoção. Um deles, quando cantou um dos mais belos e esquecidos da lavra baiana, "O Ouro e a Madeira", de Ederaldo Gentil, lançado pelo Conjunto Nosso Samba em 1974, que teve aclamação do público devido ao solo incendiário de Armandinho Macedo. Outro artista que roubou a cena foi Riachão, dividindo com Beth as autorais "Cada Macaco no seu Galho" e "Vai morar com o diabo" - que anos depois seria também regravada por Cássia Eller em seu "Acústico MTV". Com um entrosamento sem igual, Gilberto Gil foi outro destaque, pois além de "Mancada", dividiram um longo medley de sambas-de-roda, que contou também com a participação de um grupo de baianas do Terreiro do Gantois e de Santo Amaro. "De Manhã", cantado a três vozes com os irmãos Caetano e Bethânia também causou comoção dos presentes.

A trinca de damas da chamada axé music não foi esquecida pela sambista. Ivete Sangalo emprestou seu carisma a "Brasil pandeiro" (Assis Valente), Daniela Mercury foi de "Chiclete com banana" (de Gordurinha com a pernambucana Almira Castilho) e Margareth Menezes veio em dose dupla. Releu "Dindinha lua" (Walmir Lima/João Rios), gravada por Beth em seu legendário LP "No pagode", e a já citada "Filho da Bahia", de Walter Queiróz, cujo autor também foi convidado ao palco para dividir o palco com elas.

Três sambas de embalo fecharam os dois dias de show, com direito ao reforço percussivo único da bateria do Olodum. Dois deles, celebrizados pelo carioquíssimo Zeca Pagodinho - "Verdade" (de Nelson Rufino, com a participação do autor, e Carlinhos Santana) e "Samba pras moças" (de Roque Ferreira e Grazielle) - e outro pela mineira Clara Nunes, em 1971 - "Ê baiana", de Baianinho, da escola de samba carioca Em cima da Hora, em parceria com Fabrício da Silva, Enio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio. Além desses, o trigésimo número, que encerrava toda a festa ficou a cargo não exatamente de um samba, mas do afoxé "Oração de Mãe Menininha", acompanhado em coro por um teatro lotado, como que abençoando o evento. Um momento único da discografia e do audiovisual nacionais cuja edição em digital merece todas as honrarias.