Sob o signo do Urso... de Ouro
Com a promessa de reciclagem, sob nova direção artística, a Berlinale cria novas seções e gera especulações quase um ano após a consagração de 'Dahomey', hoje na MUBI
Produção mais citada entre as apostas para o Oscar de Melhor Documentário de 2025, o longa senegalês "Dahomey", da diretora Mati Diop, estreou no Brasil na última sexta, diretamente via streaming, na MUBI, sem passar por circuito comercial, cerca de dez meses depois de ganhar o Urso de Ouro, honraria máxima de um dos mais prestigiados festivais do planeta: a Berlinale.
Criado em 1951 com o objetivo de reinventar a imagem cultural da Alemanha depois de seus crimes na II Guerra Mundial, o evento integra uma espécie de G7 (grupo dos sete) das mostras competitivas mais relevantes do audiovisual, ao lado de Roterdã, Cannes, Locarno, Veneza, TIFF (Toronto) e San Sebastián. Laureou o cinema nacional com seu troféu dourado duas vezes, em 1998 ("Central do Brasil") e 2008 ("Tropa de Elite"), além de sempre abrir suas fileiras para as produções de nossos estados.
Concedeu uma láurea de direção à paulista Juliana Rojas (por "Cidade; Campo") no início do ano. Sua próxima edição, de n° 75, começa no dia 13 de fevereiro com a projeção do drama germânico "Das Licht" ("The Light"), de Tom Tykwer, e vai demarcar mudanças estruturais no evento.
Chegou ao fim a gestão curatorial de Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, vigente nos últimos cinco anos, e entra em seu lugar uma nova direção artística, a ser comandada por Tricia Tuttle, que vem do BFI London Film Festival. Ela já prometeu uma seção nova (Perspectivas, dedicada a estreantes) e escalou o divo americano dos filmes indie Todd Haynes (realizador de "Velvet Goldmine" e "Carol") para presidir a briga pelos troféus oficiais do ano que vem.
Especula-se que "Vitória", derradeiro projeto de Breno Silveira (1964-2022), finalizado por Andrucha Waddington, com Fernanda Montenegro no papel central, vá estar entre as possíveis atrações - mas nada está confirmado.
Correm pela Europa boatos de que "Chocobar", .doc da argentina Lucrecia Martel ("La Ciénega - O Pântano"), fique pronto a tempo de concorrer. Sete anos depois do aclamado "Zama", a diretora pode regressar aos longas explorando os bastidores políticos da morte do militante indígena Javier Chocobar, assassinado por latifundiários. Fala-se também na animação com raízes na Índia "Pashmina", de Gurinder Chadha.
Nascida no Quênia, a cineasta inglesa de origem indiana narra o périplo de uma adolescente pra descobrir sua ancestralidade a partir de um cachecol. O aclamado diretor estadunidense de ascendência italiana Abel Ferrara pode competir lá com "American Nails", um thriller existencialista sobre máfia com Asia Argento e Willem Dafoe. Ryan Coogler, responsável pelo fenômeno pop "Pantera Negra" (2018), também tem fortes chances de ser indicado a Ursos pelo terror "Pecadores", com Michael B. Jordan às voltas com o sobrenatural (e o racismo).
Há quem jure de pé junto que "The Way Of The Wind", de Terence Malick (EUA), será indicado no certame central do Festival de Berlim, uma vez que ele ganhou o Urso dourado, em 1999, por "Além Da Linha Vermelha". Apoiado num elenco monumental (Matthias Schoenaerts, Mathieu Kassovitz, Aidan Turner, Mark Rylance, Ben Kingsley), o realizador de "A Árvore da Vida" (2011) investiga a vida de Cristo por ângulos inusitados... e políticos, coisa que Berlim adora.
Encontra-se esse perfil também em "Light On Broken Glass", da catalã Isabel Coixet, que é adorada pela crítica alemã. Ela conta com Patricia Clarkson no papel de uma diva dos palcos em fim de carreira, que passa em revista seus fantasmas de juventude. Um prêmio da Berlinale pode elevar sua respeitabilidade no Velho Continente... e fora dele.
Receber o troféu mais cobiçado de Berlim repagina carreiras, como se vê agora com Mati Diop, que amplia seu relevo na indústria cinematográfica com "Dahomey", já acessível atrás da URL www.mubi.com. Laureada em 2019 com o Grande Prêmio do Júri de Cannes de 2019 por "Atlantique" (lançado no Brasil via Netflix), Mati agora dá uma aula de geopolítica trilhando caminhos de fantasia mesclados aos dispositivos da não ficção. Seu roteiro é estruturado como a cartografia do tráfego de uma série de relíquias beninenses, surrupiadas por colonizadores europeus, de volta ao lar. Uma dessas peças, uma estátua chamada de Número 26, é quem narra a rapinagem histórica sofrida por populações da África, como se fosse uma entidade.
"É preciso restituir para reconstruir", disse Mati, ao falar ao Correio da Manhã do papel estratégico de sua narrativa, que virou cult a partir do Berlinale Palast, que vai anunciar todas as suas atrações daqui até 20 de janeiro.