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Sempre Garoto!

Cristóvão Bastos, Romero Lubambo e Mauro Senise celebram a obra magistral de Garoto, um dos maiores músicos que o Brasil já produziu | Foto: Nana Moraes/Divulgação

O trio está de volta, mais entrosado que nunca. O brilhante piano acústico de Cristovão Bastos, os saxofones e flautas rascantes de Mauro Senise e o violão virtuoso de Romero Lubambo exploram, desta vez, o rico e inesgotável filão melódico, harmônico e rítmico de Garoto, o mestre maior do violão brasileiro.

"Nas longas horas que passei deleitando-me com este CD, ouvi as gravações originais de cada faixa pelo próprio Garoto. É impressionante sua modernidade, parece que está pedindo para tocar com esse trio contemporâneo - e vice-versa", comenta o jornalista e crítico musical Roberto Muggiati, no texto de apresentação do álbum.

A tampa abre com "Duas Contas", o samba-canção apresentado pela primeira vez no rádio em 1951 e interpretado por dezenas dos maiores nomes da MPB. Depois de uma introdução com flauta e piano, o violão de Lubambo expõe a bela melodia, retomada por um sax alto contido de Mauro e pelo toque impressionista do arranjo de Cristóvão. Mauro e Lubambo voltam para improvisos que se dissolvem numa coda sutil.

O choro "Jorge do Fusa", com balanço contagiante, se presta a uníssonos da flauta de Mauro com o piano e o violão. "Infernal", choro de 1943, tem a melodia levada num clima cool pelo sax soprano de Mauro e uma conclusão em tempo dobrado nos seus sucintos 3:56.

O samba "Lamentos do Morro" abre com uma introdução ao violão de Lubambo, que também fez o arranjo, beirando o flamenco, que Garoto adoraria. O tema segue com improvisos do violão, do sax alto e do piano cheios de suingue.

O choro-triste "Recordações", enunciado suavemente pelo sax-alto, prossegue com o violão plangente e o piano dos antigos saraus e viaja de repente pela atmosfera nostálgica das modinhas. O saltitante choro Vamos acabar com o baile faz jus ao título subversivo e se presta ao piccolo de Mauro em staccato, ao violão serelepe de Lubambo e ao piano sincopado de Cristóvão.

A canção "Gente Humilde" se tornou um hit póstumo ao ganhar letra de Vinícius de Moraes e retoques de Chico Buarque em 1970, com os pungentes versos finais: "E aí me dá uma tristeza no meu peito/Feito como um despeito de eu não ter como lutar/E eu que não creio peço a Deus por minha gente/É gente humilde, que vontade de chorar". Toda a magia das antigas serestas evocada por esta obra-prima ressoa nos inspirados solos alternados de Mauro (ao sax alto), Cristóvão e Lubambo. Depois da melodia exposta em uníssono, vem o solo mais jazzístico de Mauro (ao alto). O piano de Cristóvão deita e rola nas síncopas. É a única faixa de Lubambo na guitarra elétrica, num improviso que lembra as acrobacias estilísticas de Wes Montgomery.

"Tristezas de um Violão", também conhecido como "Choro Triste nº 1", poderia levar a assinatura de Villa-Lobos. O sentimento é acentuado pelo violão pungente de Romero e pela flauta erudita de Mauro, enquanto Cristóvão nos leva de volta aos salões dos anos 1900. Romero faz sua homenagem com "Theme I", composição complexa emulando o virtuosismo de Garoto, com uníssonos e solos vibrantes do violão e da flauta de Senise e uma breve, mas eloquente intervenção de Cristóvão ao piano.

É um tema de Cristóvão, "Lembrando Garoto", que fecha o álbum, uma balada nostálgica com solos sentimentais e meditativos de Mauro no sax alto, Cristóvão e Romero, deixando-nos uma sensação de plenitude estética.

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Um gênio brasileiro

Garoto tocava qualquer instrumento de cordas que lhe caísse às mãos | Foto: Reprodução

Considerado nosso equivalente do grande jazzista cigano belga Django Reinhardt (1910-1953), Garoto fez mais de 200 composições nos seus breves 39 anos. Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955), nascido em São Paulo, foi o quinto dos sete filhos de um casal de imigrantes portugueses, o primeiro nascido no Brasil. O sangue ibérico - com sua mistura de lusitano, árabe e judeu - justifica a comparação com Django e explica a complexidade de sua obra.

Com o pai e dois irmãos músicos, talento precoce, destacou-se aos 12 anos como o Moleque do Banjo e, não demorou muito, foi promovido a Garoto. Fazia maravilhas em todo e qualquer instrumento de cordas dedilhadas que lhe caísse às mãos.

Do seu arsenal figuravam violão, banjo, cavaquinho, violão tenor, bandolim, violino, guitarra portuguesa, guitarra havaiana, violoncelo, contrabaixo, violão quinto, rajão, bandola e uma criação sua, o bandolim-cello.

Durante dois anos, manteve um duo admirável tocando guitarra havaiana com a pianista Carolina Cardoso de Meneses.

Aos 24 anos, Garoto foi "fazer a América", deixando o Rio de Janeiro a bordo do vapor Uruguai, em 18 de outubro de 1939, a Segunda Guerra tinha começado em 1º de setembro com a invasão da Polônia pela Alemanha - os Estados Unidos só entrariam no conflito depois do ataque japonês à base havaiana de Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941. Carmen Miranda finalmente liberou sua entrada nos EUA depois de 40 dias de tratativas.

Após uma temporada de oito meses no grupo que acompanha a Pequena Notável, o Bando da Lua, o violonista era aclamado pelo organista Jesse Crawford como o homem dos dedos de ouro. O sucesso de Carmen é bombástico, popular, já Garoto repercute na área mais seletiva do jazz. Não só acompanha Carmen, mas é o responsável pelas introduções e solos de todas as canções.

A turnê passa por Nova York, Detroit, Chicago, Washington, San Francisco, Pittsburgh, Saint Louis e vai até Toronto, no Canadá. As plateias admiradas incluem músicos como o pianista Art Tatum e o band-leader Duke Ellington.

Sua faixa "Benny Goodman no Choro" provavelmente foi inspirado por essa viagem, pensando não só no clarinetista e chefe de orquestra, mas também no seu fabuloso guitarrista, Charlie Christian, morto em 1942 aos 25 anos. Garoto apresentou este choro pela primeira vez na Rádio Nacional, com arranjo de Radamés Gnattali, acompanhado pela Orquestra Brasileira.

Gravada por dezenas de estrelas da MPB, "Gente Humilde" é a composição mais famosa de Garoto. Curiosamente, na época em que a gravou, o músico ofereceu uma versão com letra, de um colaborador espontâneo anônimo, que não chegou a ser gravada comercialmente. Foi interpretada uma única vez em 16 de novembro de 1951, no programa Ondas Musicais, da Rádio Nacional, pelo coral Os Cantores do Céu, com arranjo de Badeco e Severino Filho.

Aqui vai, a título de curiosidade: "Em um subúrbio afastado da cidade / Vive João e a mulher com quem casou / Em um casebre onde a felicidade / Bateu à porta foi entrando e lá ficou / E à noitinha alguém que passa pela estrada / Ouve ao longe o gemer de um violão / Que acompanha / A voz da Rita numa canção dolente / É a voz da gente humilde / Que é feliz."