O samba é a herança mais visível da influência dos povos africanos na formação da cultura brasileira. E fazer samba e viver dele vai muito além dos princípios do mercado musical. Assim pensavam os bambas do passado e assim pensa Marquinhos de Oswaldo Cruz, um legítimo herdeiro dessa linhagem tal qual um griô a transmitir sabedorias. Figura central na defesa do samba carioca e de suas tradições, Marquinhos apresenta seu sexto álbum, "Agbo Ato" (Deck), uma síntese da vivência do compositor e sua conexão com a Portela, reverenciando nomes que moldaram sua trajetória, como Monarco, Argemiro e Jair do Cavaquinho.
"Os mais velhos da Portela sempre me apoiaram. E Manacéa me dizia para fazer o que vinha no coração. Adotei esse ensinamento como regra. Manter isso (o samba de raiz) sempre foi difícil para minha geração. Mas não vou fugir desse destino", diz o artista ao Correio da Manhã.
Ao contrário de seus trabalhos anteriores, o álbum é o primeiro que o artista lança por uma gravadora. "Chega a ser surpreendente um artista de 63 anos assinar com uma gravadora. Sou grato à Deck por todo apoio e condições para fazer um trabalho com essa qualidade", disse Marquinhos. E que qualidade. A sonoridade do disco reforça o elo com as tradições do samba. Os arranjos de Marlon Sette e a presença de músicos como Cláudio Jorge, Carlinhos Sete Cordas e Luizinho do Jêje garantem um resultado sofisticado e enraizado. "O Cláudio Jorge disse que nós gravamos esse álbum à moda antiga. Ele está certíssimo e foi muito prazeroso", completa.
O título, inspirado em uma visita à Nigéria, remete a uma expressão iorubá que simboliza bons presságios. "Essa viagem me fez compreender muita coisa. Antes, eu resistia a compor em iorubá por associá-lo à tradição baiana, mas hoje vejo que o samba nasce e renasce em muitos lugares", explica. A viagem também o fez voltar ao tempo. "Era como voltar à infância. As crianças parando de brincar para ajudar as senhoras mais velhas a carregar compras. Algo que se via muito na vida do subúrbio", recorda.
A influência ancestral se reflete em faixas como "Meu Destino, Meu Ifá", uma profissão de fé composta com Rogério Lessa; e "A Onça Morreu, O Mato É Nosso", parceria com Marlon Sette. O álbum resgata ainda "Raiz da Memória", samba-enredo apresentado na Portela em 2021. "Quando perdi a disputa com esse samba, o o Cláudio Jorge veio me dizer que esse não era um samba pra avenida, mas para ser gravado. Aqui está ele", rememora, ao falar deste samba que soa vindo de outros tempos.
Embora tenha recebido convites para compor em outras agremiações, Marquinhos explica que não saberia escrever para uma escola que não fosse a azul e branco do bairro que carrega em seu nome artístico. "O que vai pro mundo é o retrato daquele lugar", defende o sambista que criou dois projetos de preservação da memória de seu povoado: o Trem do Samba e a Feira das Yabás.
O primeiro reúne artistas de todas as vertentes num trem que parte da Central do Brasil rumo a Oswaldo Cruz tocando e cantando. Em cada vagão, cantores e músicos se apresentam para o público neste evento anual realizado na semana em que se comemora o Dia Nacional do Samba. O projeto remonta à tradição iniciada por Paulo da Portela que fugia da repressão ao samba tocando nos trens. "A única exigência que fazemos para quem vai participar é que só toque samba nos vagões", garante.
E a Feira das Yabás é um espaço de preservação de valores culturais da região de Oswaldo Cruz e Madureira com muito samba, apresentações de jongo, gastronomia, moda e artesanto na Praça Paulo da Portela, junto à Portelinha, a antiga sede da tradional escola de samba. É um hub preto por excelência.
Voltando ao álbum, Marquinhos canta em ""Agbo Ato" o amor pelos seus como nas românticas faixas dedicadas à companheira Maria Machado, como "O Sonho dos Meus Versos" e "A Luz de um Novo Dia".
A obra se destaca também pela regravação de "Boiadeiro", partido-alto de Ventura lembrado por Paulinho da Viola em um evento do Trem do Samba. "Na hora dos versos, a melodia também ganhava improvisos, uma tradição que resgatamos na gravação", explica Marquinhos. "Depois pedi ao Paulinho para lembrar esse partido alto e gravei ele cantando para poder colocar no disco", conta.
"Agbo Ao" reafirma o trabalho incessante de Marquinhos de Oswaldo Cruz na valorização do samba e suas raízes. Um trabalho que transita entre a história e o hoje, pois o samba sempre estará entre nós.