Frutificado por um boca a boca dos mais populares, "Monstro Do Pântano: Inferno Verde" finca suas raízes no coração do público e da crítica candidatando-se ao posto de HQ do ano no país. A presença do canadense Jeff Lemire, "O" quadrinista do momento, nos créditos de roteiro do álbum faz dele um ímã de elogios. O autor se popularizou na Netflix com a série "Sweet Tooth". Seu sucesso na plataforma digital garante uma nova visibilidade - e com ela uma nova legião de fãs - para seu personagem central, uma criatura monstruosa que, em sua encarnação humana, era o cientista Alec Holland. Jogado nos pântanos da Louisiana após uma ação de criminosos, ele tem seu corpo mesclado a uma fórmula bioquímica que une seu DNA a uma força vegetal mística. Na aventura de Lemire, Doug Manhke assina exuberantes ilustrações que recriam o combate de Holland contra entes da Natureza num futuro distópico, no qual a América foi engolida pelas águas do degelo das calotas polares.
"Eu tento investigar a condição humana para além do maniqueísmo", disse Lemire ao CORREIO via Zoom. "Tento falar de pessoas, investigar condições humanas, mas é fundamental que o meio ambiente integre essa reflexão".
Criado em julho de 1971, no seio editorial da DC Comics, na revista "House of Secrets" n° 92, com roteiro de Len Wein e desenhos de Bernie Wrightson, o Monstro do Pântano assombrou os quadrinhos de super-herói de teor maduro com uma mirada metafísica sobre a ecologia. É um personagem que se firmou como coadjuvante até ser promovido a protagonista, em sagas com um pé no terror e outro na filosofia, sempre cercado de ativismo ambiental. Alan Moore, o autor de "Watchmen", foi quem o repaginou, seguido por Stephen Bissette. Há 21 anos, o Guardião do Verde ganhou espaço nas telonas num filme pilotado pelo cultuado Wes Craven e conquistou uma série (de qualidade) na TV, produzida por James Wan. Ao largo da pandemia, a Panini colocou uma série de coletâneas de seus quadrinhos à venda, com destaque pra "Novas Raízes" e "Contos do Bayou". Saiu ainda um especial do anti-herói, voltado para jovens leitores, chamado "Ramificações Gêmeas", escrito por Maggie Stiefvater e desenhos de Morgan Beem.
De todo esse material, o que mais deslumbrou fãs foi "Inferno Verde", do selo Black Label da DC, no qual a violência é permitida, sem freios. Em sua trama, a Terra está quase extinta. Os últimos remanescentes da humanidade se agarram a uma ilha no topo de uma montanha perdida enfrentando uma enchente sem fim. Os Parlamentos do Verde, do Vermelho e da Decomposição, uma horda de seres superpoderosos ligados aos elementos (terra, água, fogo e ar), concordam: é hora de limpar a lousa e começar o ciclo da vida novamente neste planeta. A fim de fazer isso, eles uniram seus poderes para invocar um avatar: um dos monstros mais horríveis que já espreitaram a superfície deste planeta abandonado. Contra uma criatura como essa, não pode haver resistência… a menos que você tenha um soldado que entenda o inimigo. Alguém que já usou suas táticas antes. Alguém como Alec Holland. O problema dele: o mago John Constantine, um pilantra encapotado que já passou a perna até no Diabo, vai atrapalhar seus planos. Até certo ponto.
Os diálogos de Lemire ampliam a calhordice de Constantine, imortalizado no audiovisual num filme de 2005, com Keanu Reeves. O Desafiador é outro herói clássico da DC que aparece no gibi, em destaque.
A obra de Lemire - hoje envolvido com o thriller sobrenatural "Mazebook", via Dark Horse Comics - vai muito além do ambientalismo, de mãos dadas a uma mirada existencial nas tramas que escreve e desenha. Tem muita editora lançando coisas boas dele no Brasil, atenta à diversidade de gêneros perseguidos pelo escritor e ilustrador de 45 anos, sobretudo a Intrínseca, que importou da Image Comics uma joia dele: "Family Tree", de 2019. O álbum brasileiro é um luxo só, bem traduzido por Fernando Scheibe. Desde novembro, ele vem trabalhando numa nova safra de histórias sobre o universo de "Sweet Tooth", ambientada 300 anos depois dos feitos a serem narrados na série. Em seu recém-lançado "Mazebook", ele narra a história de um inspetor imobiliário às voltas com uma ligação telefônica misteriosa: quem o chama, no celular, é a voz de sua filha morta, clamando por socorro.
Entre flechas do Arqueiro Verde e elocubrações psicodélicas do Homem-Animal, nos quais deu o ar de seu traço, na DC Comics, Lemire aproveitou brechas na indústria - onde é disputado ainda pela Marvel, pela Top Shelf e pelo TKO Studios - pra criar um trabalho particularíssimo, sobre uma menina que, dia a dia, vai se transformando numa árvore. A metamorfose da pequena Meg, em "Family Tree" - desenhado por Phil Hester, Eric Gapstur e Ryan Cody - tem mais conexão com o curta-metragem brasileiro "Um Ramo", exibido em Cannes em 2007, por Juliana Rojas e Marco Dutra. Nele, folhas e caules começam a nascer da pele de uma mulher (Helena Albergaria) sem razão aparente, numa manifestação do Extraordinário (força nas raias do sobrenatural) entre nós. Mas, em Lemire, parece haver uma razão na mutação de Meg, que remonta a uma situação parecida com seu sumido pai, que, supostamente, abandonou mulher e filhos, mas, na prática, não largou seu lar - ele virou uma araucária falante. Quem vem dizer isso a Meg e à mãe dela, a amargurada Loretta, é o avô cuja existência a menina desconhecia: Judd. Parecidíssimo com o ator Nick Nolte, Judd chega armado até os dentes para salvar sua netinha, sua nora e seu neto maconheiro, Josh, de uma horda violenta que anseia capturar as pessoas que se metamorfoseiam em folhagens e galhos.
Para conhecer Lemire, é importante conhecer trabalhos dele como "O Soldador Subaquático" (2012), "O Ninguém" (2009) e "Condado Essex" (2008). Tipos solitários, cuja rotina é um ímã de aspereza - como o Jepperd de "Sweet Tooth" -, parecem ser a tradução de sua investigação filosófica, quase sempre mesclada a referências da identidade cultural canadense.