Publicações antológicas aqueceram o coração do público quadrinhófilo brasileiro este ano, como a série "Star Wars - O Império" (sobre Darth Vader) e o especial "Zagor & Flash", mas a cereja deste bolo recheado de iguarias pop ficou para a reta final de 2024, com o esmero editorial da Pipoca & Nanquim para relançar o clássico "O Eternauta" por aqui, num capricho como nunca se viu.
A pataca de 372 páginas faz ferver a espera pela versão audiovisual de um quadrinho que divide águas (políticas) na América Latina, sobretudo neste momento de Javier Milei no poder. Em 2025, Ricardo Darín - hoje em cartaz nas telas do Rio com o cult "Relatos Selvagens" - vai iluminar a Netflix como Juan Salvo, espécie de emissário de uma Argentina catastrofista, vestido num traje de proteção, que parece uma roupa de mergulho.
Estima-se que o Festival de Berlim (agendado de 13 a 23 de fevereiro) projete episódios do seriado. É uma potencial atração para sua seção Berlinale Series. Bruno Stagnaro, realizador do cult "Pizza, Cerveja, Cigarro" (1998), assina uma direção que muitos gigantes portenhos disputaram. As primeiras imagens de seu trabalho, que começam a circular pela web sugerem que ele foi a escolha certa, apesar da concorrência.
Até Lucrecia Martel, a diretora de "O Pântano" (2001), esteve no páreo para filmar esse libelo gráfico contra o jugo imperialista sobre os estados latino-americanos. Sua estreia assume um simbolismo reativo de protesto ao governo de direita de Milei e sua postura azeda com a ebulição cultural democrática de sua pátria.
A relevância de "O Eternauta" - lançado de 1957 a 1959 no suplemento "Hora Cero Semanal" - vai além de sua inequívoca potência visual e de sua dramaturgia sociológica, de prosa com a literatura H.G. Wells (1866-1946). Uma tragédia (cujo bastidor aponta suspeitas de vetores governamentais) em torno do roteirista Héctor Germán Oesterheld, criador da trama, amplia a importância da HQ. Nascido em 1919, ele desapareceu em abril de 1977, em meio a uma reunião de militantes de esquerda, como reação da ditadura aos antipatizantes do regime militar na Argentina. Suas quatro filhas caíram na clandestinidade e acabaram assassinadas. Duas delas estavam grávidas quando foram mortas.
O "sumiço" de Oesterheld teria ocorrido pouco depois de ele publicar a parte II das missões do Eternauta, lançada em 1976, pela Ediciones Record. Estima-se que o sucesso da primeira temporada do projeto com Darín no www.netflix.com pode assegurar a adaptação desse segundo material com Juan Salvo, papel confiado ao astro de "O Segredo De Seus Olhos", o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2010. Esse Volume Dois também saiu em português, pela Martins Fontes.
Com desenhos de Francisco Solano López (1928-2011), "O Eternauta" é uma ficção científica. Sua carreira comercial em terras argentinas se deve ao empenho da Ediciones Frontera, empresa fundada por Oesterheld e seu irmão, Jorge Mora. A trama é centrada na conversa entre um roteirista de HQs (alter ego do próprio Oesterheld) e um viajante do tempo que se materializa em sua casa numa noite. Apresentando-se como O Eternauta, o sujeito misterioso, que se chama Juan Salvo, relembra seu passado. Vestido com trajes de borracha e máscara de mergulhador, ele enfrenta uma neve radioativa que cai sobre Buenos Aires, provocando morte em massa. Aos poucos, Oesterheld transforma o relato de Salvo numa releitura futurista de "Robinson Crusoé", de Daniel Dafoe (1660-1731).
Em 1999, pouco antes de o cinema argentino entrar numa fase de reinvenção (e consagrar Darín), os episódios mais sangrentos da trajetória de "O Eternauta" foram relembrados pelo documentário "H.G.O.". Nele, os cineastas Víctor Baylo e Daniel Stefanello, entrevistam colegas de Oesterheld nos quadrinhos, além de escritores como Mempo Giardinelli. Seu trabalho com Salvo é uma metáfora dos riscos que a Argentina corria sob o jugo de um governo de ações fascistas. No fim de sua vida, ele foi deixando analogias e outras figuras de linguagem de lado e escancarando suas denúncias. A presença de Darín na série "El Eternauta" é uma promessa de que esse denuncismo dos anos 1970 perfume os roteiros que o streaming promete consagrar.
Respeitada por álbuns como "Undertaker" e "Tartarugas Ninja: O Último Ronin", a Pipoca & Nanquim revisita "O Eternauta" num projeto gráfico de capa dura, diagramado com um furo na arte do icônico capacete (que interage com o protagonista na guarda atrás). O álbum, impresso em papel offset de alta gramatura, vem com luva protetora para conservá-lo de pé nas prateleiras e traz um prefácio do pesquisador de quadrinhos Rafael Machado Costa.