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Teste de fogo para 'Sandman'

Por Rodrigo Salem (Folhapress)

Na primeira vez em que esteve no Brasil, em 1995, o escritor Neil Gaiman precisou ser alçado por cima de fãs histéricos para receber o prêmio HQ Mix em São Paulo. Na segunda, seis anos depois, o britânico perdeu a voz ao passar a noite dando autógrafos. Na terceira e última, em 2008, mais cinco horas de assinaturas para pessoas que tinham viajado até Paraty (RJ) para conhecê-lo.

Toda a comoção tinha um motivo. "Sandman", sua graphic novel criada em 1989 para o selo adulto Vertigo, da DC Comics, havia se tornado um fenômeno cultural no Brasil, sendo Gaiman o primeiro astro dos quadrinhos modernos a visitar o país no seu auge.

"O Brasil foi o primeiro país a adotar 'Sandman'", recorda o britânico. Foi a primeira tradução, numa edição linda, repleta de textos explicativos e uma contracapa com detalhe da arte. Até hoje tenho o pôster dela em casa".

Mas desde que a Netflix anunciou que adaptaria a HQ em uma série em live-action, ou seja, com atores de carne e osso, essa relação de fã e criador mudou. Em 2020, Gaiman precisou rebater contas conservadoras brasileiras no Twitter que, antes mesmo da primeira imagem da série ser divulgada, já bradavam que a distribuidora de streaming estragaria a história.

Com a estreia da primeira temporada de "Sandman" marcada para sexta-feira, os ânimos parecem ter se acalmado. "Se a Netflix me disser que 'Sandman' está indo bem no Brasil, tenho certeza de que irá bem no resto do mundo".

"O Brasil tem muitas pessoas empolgadas e felizes [com a série], mas há alguns que falam coisas horríveis como 'por que você coloca negros na sua revista?' e 'nazistas são bons'. Não vou presumir nem por um minuto que eles representam o Brasil como um todo".

Todos os dez episódios de "Sandman" mostram uma série fiel às HQs escritas por Gaiman e desenhadas por Sam Keith e Mike Dringenberg. Assim como nos quadrinhos, "Sandman" é a história de Morpheus, interpretado por Tom Sturridge, capturado, no início do século 20, por um ocultista vivido por Charles Dance, de "Game of Thrones". Ao se libertar, entra numa jornada que vai ao inferno para recuperar os artefatos mágicos que guardam uma parcela do seu poder.

Misturando fantasia clássica, literatura shakespeariana e temas existenciais como vício, religião e morte, a revista foi uma das primeiras HQs na lista das mais vendidas do New York Times. Ganhou ainda 26 prêmios Eisner, o mais importante do gênero.

Flerte de Hollywood

Com tanto prestígio, a trama atraiu os olhares de Hollywood. Já em 1991, só dois anos depois do início da publicação de "Sandman", a DC Comics, dona dos direitos do personagem, começou a receber ofertas para uma adaptação da obra para os cinemas.

O primeiro roteiro foi finalizado cinco anos depois por Ted Elliot e Terry Rossio, da animação "Aladdin", para Roger Avary, um dos autores de "Pulp Fiction", dirigir. Gaiman gostou do que leu, mas o produtor Jon Peters não ficou satisfeito e pediu mudanças. Avary se recusou e foi demitido.

Em 1998, Peters enviou novo roteiro ao escritor britânico. A adaptação foi engavetada e só ressurgiu em 2013, quando David Goyer, de "Blade", trouxe a ideia de produzir o longa com Joseph Gordon-Levitt no papel de Morpheus e, possivelmente, na direção. Com três anos de trabalho, Gordon-Levitt largou o projeto. Eric Heisserer assumiu o roteiro, mas não durou muito, pois acreditava que seria impossível traduzir a alma de "Sandman" num filme.

Em 2010, uma série havia começado a ser desenvolvida para a HBO com o diretor James Mangold à frente do projeto. Novamente, uma guerra interna na Warner, dona da DC e da HBO, fez a ideia naufragar.

Goyer e Gaiman decidiram, então, tentar uma última cartada. A dupla ocupou um pequeno espaço na Warner, em Los Angeles, e o decorou com pôsteres, painéis, réplicas de objetos e estátuas relacionados a "Sandman". Em seguida, eles começaram a convidar os chefões dos serviços de streaming para uma apresentação.

A Netflix gostou do que ouviu e, em 2019, deu sinal verde para a primeira temporada, que adapta dois arcos narrativos da HQ, "Prelúdios e Noturnos" e "A Casa de Bonecas". Para o papel principal, Gaiman e Allan Heinberg testaram centenas de atores, mas escolheram um dos primeiros a enviar uma fita: Tom Sturridge, londrino de 36 anos se encaixou na visão esquálida, fria e autoritária de Sonho, criado originalmente como o encontro entre Robert Smith, a cabeça pensante da banda The Cure, e Ian McCulloch, vocalista do Echo & The Bunnymen.

Mesmo com a produção caminhando bem, os fãs conservadores voltaram a ficar irritados quando o resto do elenco foi anunciado. Primeiro porque Lucien, bibliotecário do Sonhar, agora seria Lucienne, vivida pela atriz Vivienne Acheampong. Depois disso, veio a escolha de Gwendoline Christie para o papel de Lúcifer, senhor do inferno.

Depois da escalação de Mason Alexander Park, pessoa não binária, para o papel da entidade Desejo e de Kirby Howell-Baptiste, uma mulher negra, para interpretar Morte, mostrada como uma garota pálida nas HQs, os ataques preconceituosos - não só de brasileiros - triplicaram.

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