Até Spielberg precisa de segunda chance
Fracasso em circuito, 'Os Fablemans', filme mais autobiográfico do cineasta, ganha sobrevida no streaming e entra na lista dos dez melhores longas do ano da revista 'Cahiers du Cinéma'
Agendado para ser exibido na TV no próximo dia 17, às 22h, no Telecine Cult, "Os Fablemans" é um dos dez longas-metragens escalados para o panteão dos melhores filmes do ano da revista "Cahiers du Cinéma", encarada desde a década de 1950 como a Bíblia da cinéfila.
Foi em suas páginas que um americano de Cincinnati, Ohio, hoje com 76 anos, chamado Steven Allan Spielberg começou a construir seu prestígio mundial a partir do fenômeno "Tubarão", em 1975. Como o filme sobre a família Fableman - indicado a sete Oscars - é uma autobiografia dele, sua presença não poderia ficar de fora da votação anual de um periódico por onde passaram François Truffaut e Jean-Luc Godard.
No streaming, já é possível se deliciar como esse drama de tom confessional: ele pode ser visto por assinantes da Amazon Prime e da já citada Rede Telecine, e pode ser alugado no YouTube Play, Google Play Filmes e Apple TV.
É uma forma de garantir sobrevida a um projeto que não teve, na indústria exibidora, o êxito esperado. Nem de perto aliás. Sua receita foi um fiasco, sobretudo se comparada ao histórico de seu realizador.
Embora tenha recebido indicações a 275 prêmios e conquistado o disputado People's Choice Award do Festival de Toronto, onde fez sua estreia, "Os Fablemans" não levou nenhum Oscar para casa, contentando-se com dois Globos de Ouro, o de Melhor Filme e o de Melhor Direção. O orçamento do longa foi de US$ 40 milhões e sua bilheteria global foi de US$ 45,6 milhões, ou seja, ficou bem aquém de dar lucro, pois, em Hollywood, um filme só começa a lucrar depois de faturar cerca de três vezes o que gastou para ser rodado. Spielberg já falhou antes, vide "1941: Uma Guerra Muito Louca" (1979) ou "Hook - A Volta do Capitão Gancho" (1991). Mas o fiasco mais recente envolve sua própria história, seu legado. E que legado!
Estabelecer-se como rei de um gênero, como Spielberg conseguiu se sagrar no seio da aventura (sempre numa mescla com a fantasia), é uma tarefa árdua, porém é ainda mais desafiador quando um cineasta com uma maestria desse porte se propõe a arriscar sua criatividade em filões variadas - sobretudo num momento de maturidade.
Porém, poucos são os artesãos autorais da imagem que se jogam na pluralidade de registros dramatúrgicos como Spielberg - hoje debruçado sobre uma releitura do thriller "Bullitt", de Peter Yates, de 1968 - faz, indo da fábula ("E.T.") à épica do assombro na História ("A Lista de Schindler"). Nos últimos anos, o realizador de "Jurassic Park" (1993) gravitou pelas vertentes mais inusitadas do cinema pop, com passagens recentes pela sci-fi ("Jogador Número Um") e pelo musical ("West Side Story"). Comédia ele fez (o já citado e desastrado "1941"), drama ele emplacou ("A Cor Púrpura") e há, em seu futuro próximo, um projeto de diálogo com as HQs, por meio de "Black Hawk", da DC Comics. Faltam-lhe ainda alguns outros veios, mas o da autobiografia ele acaba de realizar com o encantador "Os Fablemans".
Espécie de "Cinema Paradiso" pipoca, o novo e tocante longa do campeoníssimo de bilheteria é uma homenagem à arte de filmar e, também, uma triagem de todos os processos que sua geração tomou para fundar uma nova estética a partir de uma vivência de sala de projeção, como espectador. Ele apenas troca o sobrenome de Spielberg pra Fabelman e elege Gabriel LaBelle para ser seu alter ego de juventude. Michelle Williams dá um contorno de excentricidade à jovem matriarca de uma família judaica oprimida em seu lugar de controle de uma casa e de um clã. Mas é Paul Dano que mais e melhor brilha no esforço de contenção ao criar um pai submisso a deveres e a um projeto de família feliz. Projeto que se alinha ao espectro de um american way of life em ruínas apontado pela horda de diretores com quem Spielberg se alinhou nos tempos da chamada Nova Hollywood.
O melhor caminho para que se entenda a grandeza de "Os Fabelmans" - iluminado de modo apolíneo por Janusz Kaminski - é realizar um balanço geracional do tempo no qual ele se formou. Houve uma vez um verão, o de 1967, no qual o cinema americano engajou-se numa bossa nova para seus padrões, diante de dois filmes "Bonnie & Clyde - Uma rajada de balas", de Arthur Penn, e "A primeira noite de um homem", de Mike Nichols.
Em ambos, dois diretores com experiências em outras mídias (Tv e teatro) contextualizaram a juventude dos EUA sob uma ótica alarmista de percepção do cerceamento moral e da violência das instituições, seja pela caretice da Família seja no chumbo quente do Estado. Dali pra frente, a filmografia da pátria de Uncle Sam tomou uma curva à esquerda, imbuindo-se do espírito cinemanovista - aquele que pariu François Truffaut, embalou Marco Bellocchio, ninou Polanski, pôs Glauber Rocha para arrotar - para tirar cascas das feridas nas veias abertas da América profunda.
Naquele momento, uma trupe formada por Francis Ford Coppola ("O Poderoso Chefão"), Brian De Palma ("Carrie, a Estranha"), Peter Bogdanovich ("A última Sessão de Cinema"), Bob Rafelson ("Cada um vive como quer"), Bob Fosse ("Cabaret"), Shirley Clarke ("Portrait of Jason"); Jerry Schatzberg ("O espantalho"), Hal Ashby ("Muito além do jardim"), Elaine May ("O rapaz que partia corações"), George Lucas ("Star Wars"), ao lado do documentarista Peter Davis ("Corações e mentes") e dos ficionistas mais experientes Robert Altman ("M.A.S.H."), Sidney Lumet ("Sérpico"), Sydney Pollack ("A noite dos desesperados") e (por que não?) Woody Allen ("Noivo neurótico, noiva nervosa"), trouxe para o primeiro plano da tela as varizes éticas que impediam a oxigenação do sangue americano. É aí que Spielberg entra - e com força total.
Os heróis de "The Fabelmans" são pessoas que sofrem, choram, encantam-se, amam, erram na translúcida experiência do dia a dia. Que filme bonito.