Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Geometria do desarranjo

Sandra Kienzler (Léa Seydoux) é uma jovem mãe que cria a filha de 8 anos sozinha e se envolve com um amigo | Foto: Divulgação

 

Esbanjando problemas nas latitudes mais variadas de seu afeto, Sandra Kienzler, a força vital do filme "Uma Bela Manhã" ("Um Beau Matin"), senta-se ao lado de uma travessa farta de salada verde, usando um casaquinho vermelho surrado. Abre um sorriso de conforto ao ver sua filha brincar com o homem a quem arrisca abrir seu surrado coração. É um instante de simplicidade plena. Sem qualquer efeito causal sobre a trama. Mas é por meio dele que sua realizadora, Mia Hansen-Løve, preenche a tela de vida, dando alma a um ensaio sobre o nós que a vida dá na rotina da gente, quando menos esperamos.

A destreza com que a cineasta traça a geometria existencial da senhorita Kinzler, num compasso de ponta fina chamado Léa Seydoux, é notável já nos primeiros planos.

Em Cannes, em 2012 essa esgrima de Mia com a lâmina cega da inércia na dramaturgia corriqueira do cinema francês foi um convite a um mar de elogios. Ninguém soube explicar o que ela foi fazer na Quinzena de Cineastas em vez de concorrer à Palma de Ouro. Mas agradou por onde esteve. E chega à grade da HBO Max para ficar, pois vem se tornando cult por lá.

Cronista da falta de perspectivas aparentes, sempre debruçada sobre o "pra onde vamos", que serve como bússola a filmes como "O Que Está Por Vir" (Urso de Prata de Melhor Direção em Berlim, em 2016), Hansen-Løve se fortalece, como narradora, filme após filmes, seguido por estruturas cada vez mais complexas, avessas a repetição. Em "One Fine Morning" (cujo título em francês é "Un Beau Matin"), a diretora flana entre o drama familiar e o folhetim romântico de modo a criar equilíbrio e cumplicidade entre essas duas instâncias.

Na trama, forografada em tintas mansas por Denis Lenoir, Sandra (o papel de Seydoux) é uma mãe solteira, viúva, que cuida sozinha da criação de sua filha, Esther (Elsa Guedj), após a morte de seu marido, cinco anos antes. Trabalhando como tradutora, ela cuida diligentemente de seu pai, Georg Kinsler (Pascal Greggory, ótimo em cena). Ele é um professor de Filosofia aposentado, que perdeu a visão devido a uma doença neurodegenerativa. A doença dele, obriga Sandra a realocar Georg várias vezes de clínicas ou de instituições de assistência. Mas, a cada trânsito dele, os dois têm uma troca, sentimental e simbólica, que reforça a conexão que ambos têm com a palavra. Ele o faz via Platão e os pré-socráticos e ela, pelos romancistas que traduz. Nesse ínterim, um amigo d'outros tempos, Clement (Melvil Poupaud, um ator em fase de evolução, preciso e sagaz em cena), aproxima-se dela. Mas não é uma aproximação apenas amistosa e, sim, um convite a um romance, embora ele seja casado e não esteja considerando a hipótese de deixar a mulher.

Inicia-se aí uma ciranda de pactos, de perdas, de danos mas, nunca, de acomodações. Mia não se atrai por bonanças estratégicas. Seu cinema é o do desarranjo, ainda que este pareça leve. A tragédia sempre pode parecer menos grade do que é. Essa é a lição deste envolvente achado da Quinzena.

Outro filmaço com Seydoux anda sendo cultuado na grade da HBO Max: "France: Sob os Holofotes". É algo de se estatelar os olhos e fervilhar a mente, a começar da sequência inicial. Já na arrancada, a atriz (dublada por Adriana Torres) aplica toda a sua destreza no papel de uma jornalista e apresentadora de TV, a repórter France de Meurs. De cara, France entrevista o presidente de seu país, numa divertidíssima jogada de edição com a figura de Emmanuel Macron. A seu lado está Blanche Gardin, atriz revelação do ótimo "Apagar o Histórico" (Prêmio do 70º Aniversário do Festival de Berlim, em 2020). Hilária, Blanche assume o papel da produtora de reportagem de Meurs, a doidona Lou, fazendo caras, caretas e insinuações de sacanagem para a colega, ao olhar pra Macron. É o bastidor de uma cobertura jornalística diante de nós, com a fotografia de David Chambille a ferver as cores - sobretudo o vermelho do batom da protagonista - na temperatura máxima.

 

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