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Cinema de ação gourmet

Don Lee em 'The Roundup Punishment', a sequência do sucesso 'Força Bruta' | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Ao anunciar os títulos que compõe sua programação de premières, fora da disputa pelo Urso de Ouro de 2024, a 74ª Berlinale (agendada de 15 a 25 de fevereiro) incluiu um filme de ação daqueles de voar tiro para todo lado em seu menu de atrações: "The Roundup: Punishment" ("Beom-Joe-do-si 4"). Essa trama de investigação e tapas na cara, dirigida por Heo Myeong Haeng, é uma sequência de um sucesso mundial de bilheteria, gestado na Coreia do Sul, chamado "Força Bruta", lançado aqui em 2022.

Ma Dong-seok, ou Don Lee, o Gilgamesh da aventura "Eternos" (2021), da Marvel, é seu protagonista: uma espécie de Dirty Harry da Ásia. Embora o Festival de Berlim tenha exibido ensaios sobre a violência em anos recentes - caso de "Logan", em 2017, e de "Tempo de Caça", em 2020 -, é curioso ver o mais politizado dos eventos cinematográficos do Velho Mundo flertar com o cinemão de gênero pela mais patrulhada das vias: os thrillers de pancadaria. O anúncio de sua participação na maratona cinéfila germânica acontece no momento em que o violentíssimo (e imperdível) "Beekeeper: Rede de Vingança", com Jason Statham, candidata-se a cult e se firma como a maior bilheteria dos EUA de semana passada para cá.

Paralelamente, um filme finlandês recheado de adrenalina, "Sisu", de Jalmari Helander, no qual um garimpeiro encara nazistas a picaretadas, roda festivais mundo afora e encontrar lar, entre nós, na HBO Max. Não bastasse isso, o Festival de Roterdã, na Holanda, que começa no dia 25 de janeiro, vai exibir a trilogia italiana de ação "Diabolik", baseada em HQ homônima. A França promete solavanco nas poltronas com "Le Salaire De La Peur", remake de "O Salário do Medo" (1953), que vai estrear sob a direção de Julien Leclercq, apoiado num elenco que junta Ana Girardot, Alban Lenoir, Franck Gastambide e Sofiane Zermani - além de um caminhão cheio de nitroglicerina das mais explosivas.

Logo após o anúncio da Berlinale, na manhã de segunda-feira, o quilate comercial de "The Roundup: Punishment" já subiu entre distribuidores, exibidores e mesmo streamings. O longa de 2022 pode ser visto na Amazon Prime. É uma expressão de sucesso da fase pop sul-coreana do noir policialesco.

Com "Parasita" (e seus quatro Oscars uma Palma de Ouro) flamulando como um estandarte de glória para o mundo, o cinema da Coreia do Sul vem emplacando um sucesso atrás do outro desde 2004, quando "OldBoy" estourou no Festival de Cannes, conquistando o Grande Prêmio do Júri, retratando lutas (com um martelo na mão) de um modo como nunca se viu, a um passo da crueza. Seu próprio realizador, Park Chan-Wook, brilhou recentemente com o tenso "Decisão de Partir". Mas uma coisa é celebrar o êxito e o vigor estético de bons filmes. Outra coisa é se orgulhar de ver um personagem de um desses bons filmes ultrapassar as fronteiras de sua própria narrativa e virar uma figura que cai no gosto do planisfério cinéfilo, um pouco como se viu no Brasil com o Capitão Nascimento e com Zé Pequeno. É que acontece com a franaquia à la "Stallone Cobra" que a Berlinale vai projetar. Sua consagração se deu graças ao carisma de um ator em estado de graça: o já citado Ma Dong-seok.

No papel do imparável policial Ma Seok-do, ele ajudou "Força Bruta" ("The Roudup"), uma produção de US$ 7,7 milhões, a faturar US$ 100 milhões Ásia adentro. O ator cria um tipo maluco, perigoso, mas devotado a um ideal de justiça que parece não caber mais num mundo de polarizações, assombrado pela patrulha ideológica da correção política.

Patrulha essa que foi responsável por uma erosão no ethos e na forma do cinema de ação, a partir dos mandamentos que o filão assumiu como seu código simbólico a partir do fim dos anos 1960, com o sucesso de "Bullitt" (1968).

A ideia do "exército de um homem só" que nos garantiu pérolas como "Comando Para Matar" (1985) ou "Duro de Matar" (1988) passou a ser vista como um ranço obsoleto de uma certa moral (a americana, da era Ronald Reagan) e não um pleito universal (como os gregos, com seus heróis, apontaram, milênios atrás). Aquiles seria "cancelado" pelas redes sociais de hoje, como acontece com Rambo. Mas... na seara dos filmes B, aqueles feitos em regime de cinto apertado, há uma margem de manobra.

E é nessa margem que Ma Seok-do pode agir como Gene Hackman agia em Popeye Doyle em "Operação França" (1971). E a direção precisa de Lee Sang-yong (de "4th Period Mistery") facilita muito seu trabalho, uma vez que o realizador mantém a adrenalina alta o suficiente para que Don Lee possa destilar toda a fúria de um detetive impulsionado pela corrupção estatal à sua volta.

Imparável no cumprimento do dever, Ma Seok-do precisa repatriar um criminoso, onde descobre uma rede ilegal que incrimina muita gente. E, numa investigação nada protocolar, ele vai abrindo uma trilha sangrenta até chegar ao bandido que deseja tirar de circulação. O que rege seus passos é um conceito que rejeitado Hollywood consagrou mas, depois, foi aconselhada a rejeitar: a premissa de que o modo de deter alguém sem freios é caçá-lo com alguém com menos freios ainda.

É uma premissa que pode soar conservadora e ser tachada de fascista. Mas a forma como Sang-yong dirige o longa nos liberta dessa pecha, ao propor uma crônica social que faz de Ma Seok-do um rebelde em um sistema esgotado. É uma abordagem crítica mais do que bem-vinda para oxigenar um gênero cansado, mas que fala de sacrifícios e lealdade.

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