Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

No princípio, ou no fim, era o verbo de Lima Barreto

Luis Miranda vive o autor de Policarpo Quaresma em 'Lima Barreto Ao Terceiro Dia' | Foto: Divulgação

 

Lançado sem muito alarde, apesar de ter sido acolhido com críticas elogiosas, em 2022, "Lima Barreto, ao Terceiro Dia" ganha novas e merecidas vitrines nas plataformas digitais. Dá para fisgar essa necessária imersão na psique fraturada de um de nossos mais potentes escritores na Amazon Prime e no Globoplay, sendo que a ClaroTV também dá pistas de como vê-lo.

Falar desse longa-metragem é falar de literatura. É filme que evoca escritas. "Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que estorciam no meu cérebro. O flanco que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado...", escreveu Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) num recanto de página de "Recordações do Escrivão Isaias Caminha" (1909). É uma exortação aos crocodilos sociais e existenciais de sua trajetória como jornalista. Uma trajetória perfumada pela flor do Lácio, numa conexão entre a lida da reportagem e o ato de escrever literatura, que acabou afogada, há cem anos, em aguardente, epilepsia tóxica e crises de reumatismo.

É uma trajetória que perpetuou a luta antirracista na prosa nacional dos séculos XIX e XX, discutindo o "embranquecimento" em nossas representações de nação, por meio de "Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá" (1919) e "Clara dos Anjos", publicado postumamente em 1948. Uma trajetória que o diretor Luiz Antonio Pilar (de "Candeia") filma não num viés biográfico ortodoxo e, sim, num diálogo transmídia entre Teatro e Cinema. Diálogo que se calca na força do verbo - num primor de roteiro, laureado no Cine PE em 2021 - numa estrutura palavrosa, pautada não pela causalidade (ação gera reação) e, sim, por um fluxo de pensamento livre, em jorro, capaz de traduzir uma psiquê fraturada pela exclusão.

Pilar monta uma dramaturgia de evasão (do tempo e da lucidez), que faz da memória sua arena, a partir da peça teatral homônima escrita em 1984 por Luís Alberto de Abreu (autor de "Foi Bom, Meu Bem?") e encenada em 1995, com montagem dirigida por Aderbal Freire-Filho. No palco, Fernando Almeida (1974-2004) e Milton Gonçalves (1933-2022) se revezavam na encarnação de Lima, em dois momentos: o Barreto jovem, cheio de som e de fúria; e o Barreto macerado pelo alcoolismo. Na engenharia fílmica que criou apoiado na madura fotografia de Daniel Leite, Pilar divide seu personagem em dois hemisférios. De um lado, há Sidney Santiago Kuanza, sólido em uma composição a um só tempo iracunda e doce. Do outro, vem (o gênio) Luis Miranda, que leva Lima ao precipício da inconsciência.

Cada uma dessas "instâncias" de Lima tem um dinâmico a seu lado, ou seja, uma figura que empurra o escritor a um horizonte dionisíaco de criação. Na fase final, com Miranda, surge o paciente de um hospital psiquiátrico, Felipe, esculpido a cinzel pelo artesão do drama Eduardo Silva. Na fase jovem, há Gregorinho, sócio de Barreto na pinga, defendido pelo ator Fernando Santana com carisma a mil. E entre eles aparecem as elucubrações do Policarpo Quaresma, o Dom Quixote do Brasil, em erupção por meio do vulcão Orã Figueiredo, a lutar contra e vencer os moinhos de vento da caretice. É, portanto, um filme com medula nas artes cênicas, que não se presta a didatismos, mas gera catarse e instiga um debate contra a intolerância racial. Vai ter Lima Barreto no Canal Curta! Também, e em sua plataforma online. A audiência de filmes ligados ao escritor é sempre assegurada.

"Noite e Dia: Lima Barreto, Obra & Vida", produção da Kinopus estreia no Curta! no dia 1º de fevereiro, às 21h30. Pode ser visto ainda no CurtaOn. A direção é de Rodrigo Grota, que mapeia os feitos do autor.

 

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