Geometria do desarranjo
Inédito em circuito brasileiro, 'Uma Bela Manhã', que foi sensação na Quinzena de Cannes, vira cult na HBO Max
Esbanjando problemas nas latitudes mais variadas de seu afeto, Sandra Kienzler, a força vital do filme "Uma Bela Manhã" ("Um Beau Matin"), senta-se ao lado de uma travessa farta de salada verde, usando um casaquinho vermelho surrado. Abre um sorriso de conforto ao ver sua filha brincar com o homem a quem arrisca abrir seu surrado coração. É um instante de simplicidade plena. Sem qualquer efeito causal sobre a trama. Mas é por meio dele que sua realizadora, Mia Hansen-Løve, preenche a tela de vida, dando alma a um ensaio sobre o nós que a vida dá na rotina da gente, quando menos esperamos.
A destreza com que a cineasta traça a geometria existencial da senhorita Kinzler, num compasso de ponta fina chamado Léa Seydoux, é notável já nos primeiros planos.
Em Cannes, em 2012 essa esgrima de Mia com a lâmina cega da inércia na dramaturgia corriqueira do cinema francês foi um convite a um mar de elogios. Ninguém soube explicar o que ela foi fazer na Quinzena de Cineastas em vez de concorrer à Palma de Ouro. Mas agradou por onde esteve. E chega à grade da HBO Max para ficar, pois vem se tornando cult por lá.
Cronista da falta de perspectivas aparentes, sempre debruçada sobre o "pra onde vamos", que serve como bússola a filmes como "O Que Está Por Vir" (Urso de Prata de Melhor Direção em Berlim, em 2016), Hansen-Løve se fortalece, como narradora, filme após filmes, seguido por estruturas cada vez mais complexas, avessas a repetição. Em "One Fine Morning" (cujo título em francês é "Un Beau Matin"), a diretora flana entre o drama familiar e o folhetim romântico de modo a criar equilíbrio e cumplicidade entre essas duas instâncias.
Na trama, forografada em tintas mansas por Denis Lenoir, Sandra (o papel de Seydoux) é uma mãe solteira, viúva, que cuida sozinha da criação de sua filha, Esther (Elsa Guedj), após a morte de seu marido, cinco anos antes. Trabalhando como tradutora, ela cuida diligentemente de seu pai, Georg Kinsler (Pascal Greggory, ótimo em cena). Ele é um professor de Filosofia aposentado, que perdeu a visão devido a uma doença neurodegenerativa. A doença dele, obriga Sandra a realocar Georg várias vezes de clínicas ou de instituições de assistência. Mas, a cada trânsito dele, os dois têm uma troca, sentimental e simbólica, que reforça a conexão que ambos têm com a palavra. Ele o faz via Platão e os pré-socráticos e ela, pelos romancistas que traduz. Nesse ínterim, um amigo d'outros tempos, Clement (Melvil Poupaud, um ator em fase de evolução, preciso e sagaz em cena), aproxima-se dela. Mas não é uma aproximação apenas amistosa e, sim, um convite a um romance, embora ele seja casado e não esteja considerando a hipótese de deixar a mulher.
Inicia-se aí uma ciranda de pactos, de perdas, de danos mas, nunca, de acomodações. Mia não se atrai por bonanças estratégicas. Seu cinema é o do desarranjo, ainda que este pareça leve. A tragédia sempre pode parecer menos grade do que é. Essa é a lição deste envolvente achado da Quinzena.
Outro filmaço com Seydoux anda sendo cultuado na grade da HBO Max: "France: Sob os Holofotes". É algo de se estatelar os olhos e fervilhar a mente, a começar da sequência inicial. Já na arrancada, a atriz (dublada por Adriana Torres) aplica toda a sua destreza no papel de uma jornalista e apresentadora de TV, a repórter France de Meurs. De cara, France entrevista o presidente de seu país, numa divertidíssima jogada de edição com a figura de Emmanuel Macron. A seu lado está Blanche Gardin, atriz revelação do ótimo "Apagar o Histórico" (Prêmio do 70º Aniversário do Festival de Berlim, em 2020). Hilária, Blanche assume o papel da produtora de reportagem de Meurs, a doidona Lou, fazendo caras, caretas e insinuações de sacanagem para a colega, ao olhar pra Macron. É o bastidor de uma cobertura jornalística diante de nós, com a fotografia de David Chambille a ferver as cores - sobretudo o vermelho do batom da protagonista - na temperatura máxima.