Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Reinvenção de um filme maldito

O melodrama de Asghar Farhadi abriu o Festival de Cannes em 2018, mas não obteve o reconhecimento esperado | Foto: Divulgação

Dos muitos aforismos que o diretor baiano Glauber Rocha (1939-1981) consagrou em vida, há uma frase que se aplica bem ao doído "Todos Já Sabem", disponível a partir de hoje na grade da MUBI: "Deus perdoa; a História, não". Pois foi o fluxo do tempo que redimiu um longa-metragem de CEP espanhol, mas de DNA iraniano, com Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín.

Há um meme que corre pela internet, nas redes sociais, ligado à projeção desse melodrama no abre-alas do Festival de Cannes de 2018, no qual Bardem dá um pito em um jornalista que pergunta a ele sobre o que significa desfrutar da companhia de sua mulher também no trabalho. Sua resposta é: "A pergunta é de um mau gosto...!". Porém, esse longa, que hoje se candidata a cult nas plataformas digitais, no www.mubi.com, vai além dessa e de muitas outras polêmicas. Há potência em sua dramaturgia.

Ganhador de dois Oscars de melhor filme estrangeiro - por "A Separação", em 2012, e por "O apartamento", em 2017 -, o diretor Asghar Farhadi, do Irã, amargou ressaca pela fria recepção ao filme, há cinco anos. Trata-se de um experimento autoral com indisfarçável vocação popular que nasceu dos esforços do produtor francês Alexandre Mallet-Guy (de "Sono de Inverno") para internacionalizar a estética que Farhadi começou a esculpir em solo iraniano.

Havia uma ideia de que ele filmasse uma história com foco em Berlim, com suporte financeiro da França, mas a Espanha logo apareceu como foco para esta produção de €10 milhões.

Sua trama, devastadora, fala sobre um ex-casal fraturado por conflitos de classe social que se reencontra, anos depois, quando os dois estão casados e a filha dela (Penélope) desaparece. Esperava-se que esse enredo, que une Marx, abraços partidos, um cenário idílico e uma reflexão moral sobre o dever rendesse um fenômeno de bilheteria. Sua arrecadação, contudo, não passou de US$ 13,8 milhões. O longa também não se converteu num chamariz de Oscars. Nada disso, contudo, tira de o brilho e a potência deste longa com pecha de fracassado.

"A culpa é um motor para segredos e angústias, e é um mal que cria metástase no tempo", disse Farhadi ao Correio da Manhã, quando o projeto era finalizado. "A Espanha é personagem na forma como eu vejo o mundo. Fiz este filme para mostrar que, embora alguns prédios sejam tombados e outros sejam reerguidos, mesmo nos rincões do interior de um país ibérico, as tradições mais ancestrais ficam intactas, mesmo aquelas que nos cerceiam, ou que levam à intolerância, como a honra, que é o motor dos conflitos aqui ou em qualquer seio familiar, do Irã ou do Ocidente".

Com a fama que alcançou a partir da conquista do Urso de Ouro, em 2011, por "A Separação", Farhadi conseguiu atrair o casal Penélope e Bardem para o projeto, mesmo sem falar nada em espanhol. "Existem valores nesse filme que são universais. Deus é um deles, que entra em cena como força de sustentação afetiva", disse Darín ao Correio.

Fotografado pelo habitual parceiro de Pedro Almodóvar José Luis Alcaine, "Todos lo Saben" (título original) tem como seu eixo um rapto. Em visita à sua família na Espanha, depois de anos morando na Argentina, Laura (Penélope) tem sua filha adolescente sequestrada. Seu marido, o ex-alcoólatra (salvo do vício por Deus) Alejandro (Darín), ficou por aqui pela América do Sul. Resta a ela contar com um ex-namorado do passado, hoje casado: Paco (Bardem), que comprou terras outrora pertencentes ao pai de Laura. A entrada de Darín foi consequência do sucesso do longa argentino "Relatos Selvagens" (2014), do qual ele é parte do elenco. Seu nome é hoje um sinônimo de sucesso na Europa.

Ao longo da primeira hora de "Todos Já Sabem", percebe-se que existe uma revelação a ser feita por Laura (Penélope) a Paco, um amor de ontem, vivido por Bardem. O que vai ser contado fede a obviedade. Mas como o longa segue trilhas inusitadas em seu passeio pelas bodegas, quintas e paióis de feno de Torrelaguna, um município de 4,7 mil habitantes ao norte de Madri, espera-se que essa sensação incomoda de que há algo óbvio no ar vá cair por terra - mas não cai. Estamos diante de uma "volta do filho pródigo" (filha, no caso) classicamente bíblica: o regresso de Laura. No filão em que a trama se insere, o folhetim, não se pode temer o excesso. Ele transborda, e encanta.

 

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