Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Propriedade' da invenção

Malu Galli é ameaçada pelos trabalhadores injustiçadas de sua fazenda em 'Propriedade' | Foto: Divulgação

 

Representada em circuito pelo tocante "Sem Coração", de Nara Normande e Tião, o cinema pernambucano, uma imparável usina de invenção, provou ser capaz de brilhar - como poucos polos audiovisuais do país - na seara do thriller com o sucesso de "Propriedade". Recebido com mimos em sua passagem pela Berlinale 2023, o longa-metragem de Daniel Bandeira revela um novo prisma em sua chegada ao streaming, via Netflix.

Sua imersão no código do coronelismo é ampliado agora, em sua passagem por uma nova via de acesso ao público, na revelação de novas camadas de sentido em relação ao vitimismo e à opressão. Sua trama conversa com o conceito filosófico do Paralelismo do Cordeiro, de Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Segundo o filósofo: "Quem luta contra monstros deve garantir que, no processo, não se torne um monstro. Se você olhar o suficiente para um abismo, o abismo voltará a olhar para você". Pois o precipício que Bandeira abre em seu belo filme é o do desamparo, da submissão e do revanchismo. Sua edição virtuosa cerze esses três pontos, à luz de uma filmografia que nos deu "Bacurau" (2019), "Azougue Nazaré" (2018) e "Aquarius" (2016). É o filme que desmonta a estrutura sociológica funcionalista (e paternalista) do cinema brasileiro oferecendo a ele, como alternativa, o léxico das narrativas de gênero, mas de olho no legado marxista.

Certezas de classes - a dos pobres e a dos aristocratas - são um convite à ruína na trama, que contextualiza o justiçamento e revanchismo sob múltiplas perspectivas críticas, tanto aquelas que desnudam a microfísica da dominação fundiária quanto aquelas que problematizam (bem) as consequências do levante popular.

Laureado com o troféu Redentor de Melhor Montagem (dada a Matheus Farias, o editor de "Retratos Fantasmas") no Festival do Rio 2022, "Propriedade" se reporta a cartilhas do thriller. Ganhou o prémio de Melhor Direção no Fest Aruanda, na Paraíba, em 2022, por todo o seu virtuosismo nos enquadramentos. Saiu de lá ainda com troféus de Melhor Figurino, Direção de Arte, Som e Fotografia. Essas láureas vieram no momento em que o cineasta expurgava um fantasma da sua vida profissional.

Em junho de 2022, Bandeira conseguiu "desengavetar" a sua primeira longa, que ficou anos a fio (15, para sermos exatos) na fila de espera para estrear: "Amigos de Risco". Essa produção foi exibida pela primeira vez no Festival de Brasília, em 2007 e desapareceu, pois, sofreu um extravio da suas cópias em película e outros percalços. É a história de dois colegas que carregam um camarada desmaiado Recife adentro. Já era uma percepção da solidariedade popular, que é o tema de "Propriedade".

Nesse seu novo (e mais maduro) trabalho, Bandeira trabalha a ideia do que é "arriscado", do "risco" (mencionado no título do filme anterior) em outro plano. Não opera mais no plano urbano de uma metrópole, em deslocamento, mas, sim, na condição de inércia forçada de uma artista de classe social abastada acossada por uma multidão de pessoas que tiveram seus empregos reduzidos a pó. Esse povo sobre o qual fala está em um contingente rural.

Quem nos leva ao território sem lei (e cheio de abusos) mapeado por Bandeira é Tereza, uma estilista vivida pela atriz Malu Galli, que esbanja potência trágica. Ela é uma designer de moda. Sua vida se embatucou depois de uma situação em que ela foi refém, durante um assalto, resvalando num trauma. Na luta contra os fantasmas do passado, ela se vê em frente a um novo perigo quando os trabalhadores da fazenda do marido, um sujeito sexista e mesquinho, fazem um motim em prol dos seus direitos trabalhistas, mantendo-a recolhida em um carro blindado. É uma mistura de John Carpenter (em "Assalto À 13ª DP", de 1974) com o Roman Polanski de "Cul-de-sac - Armadilha do Destino" (Urso de Ouro de 1966).

Fotografado numa luz dionisíaca por Pedro Sotero (de "O Som ao Redor"), o roteiro faz jus à natureza autoral do seu realizador ao usar o tempo narrativo numa compressão absoluta, até um transbordamento no qual explode em horrores sociológicos. E Malu transforma-se na melhor scream queen (diva do terror) que o cinema brasileiro já viu, com um visual à la Jamie Lee Curtis. Na autópsia em corpo vivo daquele quinhão do Nordeste, Bandeira dá uma aula de reforma agrária regada a adrenalina.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.