Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Mania de Cronenberg

Em 'Crimes of the Future', Viggo Mortensen vive um artista performático que faz mostras públicas para exibir suas cirurgias de órgãos | Foto: Divulgação

Nesta quinta-feira (11) serão divulgados os concorrentes à Palma de Ouro do Festival de Cannes e todas as listas que especulam sobre os potenciais títulos da disputa oficial do evento citam "The Shrouds". A razão? Seu realizador, David Cronenberg, canadense de 81 anos encarado como "O" papa do body horror. Na trama, Vincent Cassel vive Karsh, inventor responsável por um instrumento capaz de falar com os mortos.

A aposta alta na escolha desse longa-metragem é prova de uma Cronenbergmania que ronda a Europa - e não só ela - nos últimos 20 anos. No momento em que "Marcas da Violência" (2005), uma adaptação de HQs com Viggo Mortensen no papel central, levou o cineasta à Comic-Com de San Diego (o maior evento nerd do planeta) e virou um cult, a grife autoral desse mestre egresso do Canadá virou pop. Fora isso, há uma efeméride em torno de seu nome: em 2024, completam-se 55 anos de sua estreia em longas, demarcada pela estreia de "Stereo" (1969).

Seu filme anterior, "Crimes of The Future", hoje na MUBI, teve uma avassaladora carreira nos festivais e no streaming. Brilhou apesar de não ter sido premiada em sua passagem por Cannes, onde parte da plateia deixou a projeção incomodada com a representação da fisiologia humana. Monumental, a fita é uma ficção científica catastrofista. Foi projetada ainda no 70º Festival de San Sebastián, no norte da Espanha, numa homenagem a seu realizador, de onde ele saiu com o troféu Donostia, láurea honorária referente ao conjunto de sua obra… e à sua excelência.

Embalado numa serena trilha sonora de Howard Shore similar a um mantra, "Crimes of the Future" (título original) faz jus à toda a expectativa que o cercou na Croisette, onde brigou pela Palma de Ouro. É sublime! Foi o espetáculo autoral mais radical de Cannes, em sua edição nº 75 e gerou uma vasta quilometragem de resenhas inflamadas na imprensa europeia. É um filme perfeito em sua dramaturgia intimista e de uma riqueza inestimável em seu reflexo das angústias que movem o mundo em 2022.

Estão em seu filosófico roteiro, filmado em Atenas, o abandono gradual do toque e do contato físico; a radical espetacularização das opiniões; identidades performáticas; doenças sistêmicas; e um conceito brilhante: "o design do tumor", que sugere o crescimento desenfreado de ideias comatosas. E some a tudo isso um Viggo Mortensen em estado de graça. Coroando tudo, há o fato de Cronenberg estampar sua marca venérea, intestinal, a cada plano, sem abrir mão, hora alguma, dos códigos de gênero da sci-fi.

Em sua tenebrosa projeção do Amanhã, o filme de Cronenberg registra o fracasso do projeto humanista que pudesse gerar harmonia entre as civilizações. Na trama, à medida que a espécie humana se adapta a um ambiente sintético, o corpo passa por novas mutações. Essa é a realidade de Saul Tenser (papel de Viggo), artista performático célebre, apaixonado por sua parceira Caprice (Léa Seydoux, igualmente potente). Ele faz mostras públicas de suas cirurgias de órgãos, em performances de vanguarda. Mas algo nessa rotina vai mudar quando Timlin (Kristen Stewart), uma investigadora do Registro Nacional de Órgãos, passa a seguir obsessivamente seus movimentos, esbanjando desejo por Saul e seus métodos de autoanálise. Há ainda uma espécie de investigador, encarnado pelo multiartista Welket Bungué, que carrega o filme com uma carga de mistério. Vale especial aplauso a produção dos figurinos, a se ressaltar o traje à la Darth Vader de Saul.

"Esse filme tenta abordar o que viramos", disse Cronenberg à TV francesa, antes de Cannes começar, sendo coroado por revistas francesas por uma obra coalhada de sucessos, como "Cosmópolis" (2012), "Senhores do Crime" (2007), "A Mosca" (1986) e "Videodrome" (1983).

Ao Correio da Manhã, o cineasta respondeu que toda imagem, still ou em movimento, "é sempre uma ritualização da morte, por ser uma maneira de encapsular o Tempo, mas este age sobre os corpos num avanço que não pode ser paralisado".

Com "Crimes of the Future", o cinema mundial entrou num casulo onde revê as microfísicas do absurdo e do abandono de nosso tempo, aplaudindo o nascimento de um filme seminal. Há uma sequência nele que se candidata à posteridade: uma dança de um performer cego e de boca costurada que tem uma profusão de orelhas presas ao corpo. É um signo de nossa incapacidade corrente de ouvir o mundo… de escutar o outro.

 

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