Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O cinema do apenas de 'Arábia' brilha no streaming

Em Árábia', um olhar sobre a vida operária das Gerais ilumina as plateias de brasilidade | Foto: Divulgação

Objeto de culto com sua mirada poética sobre o realismo, "Arábia", um dos filmes de maior revelo na cartografia de afetos do Brasil nas telas da última década, vai ganhar um novo lar: a Filmicca. Esse marco mineiro hoje a integrar o cardápio da plataforma consagrada por sua curadoria humanizada.

Essa pérola de Minas soma 17 prêmios internacionais em seu currículo, para ampliar seu prestígio. A dica de sua grandeza quem deu foi o escritor Luiz Ruffato, em "As máscaras singulares". Em sua poética, as Gerais ganham um peso mítico, assim como na cinemática de seus conterrâneos de Minas, os cineastas Affonso Uchoa e João Dumans.

Escreve Ruffato: "Onde quer que estejas, em teu país ou em outro, és estrangeiro: ninguém tua língua compreende. Só, o deserto de estranhas veredas percorres. Conservas, no entanto, dos primeiros anos, o albor, quando tua cidade, madrasta e mãe, teus sonhos na noite fresca velava. A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora. Ah! Somos apenas o que somos. Apenas".

Isso aí, que a poesia do autor de "Eles Eram Muito Cavalos" desvela, define "Arábia", lançado em 2017. Ele é potente em sua decantação lírica (ainda que de um lirismo desesperançoso) do realismo. É o cinema do "apenas", isto é, da percepção das singelezas (as belas e as dolorosas). Faz a síntese poética das Gerais, lar de Ruffato, de Carlos Drummond de Andrade, de João Guimarães Rosa e de um novíssimo cinema de observação, como se vê neste ensaio sobre a andança como expressão de identidade. Vale lembrar que Dumans está lançando um novo longa. Chama-se "As Linhas Da Mão".

Perfumado à morte, pois tem como narrador as memórias de um trabalhador acidentado, que arriscou transformar suas memórias em épica, num rascunho de diário, "Arábia" abriu sua trajetória de encantamentos há quatro anos, pelo Festival de Roterdã, na Holanda - um canteiro de narrativas com instinto de experimentação formal.

De lá, correu 49 mostras estrangeiras, indo de San Sebastián, a maior da Espanha, a Yerevan, na Arménia, passando ainda por Cartagena, na Colômbia, num trajeto demarcado por dez prêmios internacionais. Junte a eles cinco troféus Candango, incluindo o de Melhor Filme, conquistado no Festival de Brasília de 2017 pela saga andarilha de Cristiano, vivido por Aristides de Souza.

À exceção de um preâmbulo cheio de lirismo, todo o resto do filme de Dumans e Uchoa é uma espécie de monólogo dele, que corre em contraponto às imagens, quase como uma trilha sonora. E ela não direciona o olhar: este corre livre, como os pés de Cristiano, em sua errância quase inata. Esqueça virtudes heroicas, Cristiano é gente. É a gente: trabalha com mexerica aqui, vira metalúrgico ali, bebe com os amigos, joga papo fora, ama e se deixa amar por uma colega, num romance que condimenta sem muita pimenta seu jeito a esmo de viver.

Não há projetos ou sonhos nele: há deslocamentos. Cada posto é um aprendizado, para ele, para nós espectadores e para o jovem André (Murilo Caliari), que encontra o caderno de memórias de Cristiano (depois que este se machuca gravemente) no início do filme e engata a leitura, partilhando o saber do errar conosco. O maior achado: a simplicidade, argamassa com que o protagonista constrói seu mundo interior, entre perdas e ganhos.

Sem floreios ou adereços vaidosos na fotografia de Leonardo Feliciano, sempre atenta à composição de quadros rigorosos na habilidade de sintetizar os espaços por onde flana, a câmera de Dumans e Uchoa lembra o dispositivo narrativo do mestre japonês Yasujiro Ozu (tipo o de "Começo de Primavera"). Segundo Ozu, impressões imediatas traem, observações ruminadas e pacientes libertam. Os mineiros filmam assim. E, apesar de a palavra ser a bússola de nossa jornada pelas mil e uma noites de Cristiano, há muita contemplação silenciosa em "Arábia". O silêncio cumpre o papel de ser o som da reflexão, da autodescoberta, das convenções de um mundo que institucionalizou a opressão. A Minas do filme não é bucólica, não é árcade: é uma Minas operária, onde o ato de trabalhar dá subjetividade ao indivíduo

 

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