Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O uivo antropofágico de Luca Guadagnino

Timothée Chalamet é o canibal do longa de Guadagnino | Foto: Divulgação

Poema para poetas e sobreviventes, "O Uivo" (1956) golfava verdade ao cartografar a América que se redesenhava com fome de soberania, a partir da segunda metade do século XX, alheia a quem ficou pela beira do caminho, ao dizer, pela boca barbuda de Allen Ginsberg (1926-1997): "Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura…… famélicos histéricos nus, (...) pobreza, farrapos e olhos ocos e loucos sentaram fumando na escuridão sobrenatural dos apartamentos sem calefação flutuando pelos tetos das cidades, contemplando jazz".

Esse é o clima, o da fossa beatnik (termo usado para descrever a literatura escrita com os pés pela geração de escritores e poetas errantes de Gisnberg), que encontramos nos EUA de "Até Os Ossos" ("Bones and All"), uma iguaria na obra (cada vez mais potente) do diretor italiano Luca Guadagnino. Ele volta às telas, hoje, com "Rivais", estrelado por Zendaya. Com tal lançamento, sua obra pregressa volta a despertar paixões.

Cinco anos depois de sua consagração com "Me Chame Pelo Seu Nome" (Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2018), o cineasta retomou parceria com Timothée Chalamet, um ator inquieto, a fim de desatar o nó autoral de sua filmografia: o desejo de "devorar" o outro. No idílico drama romântico que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood premiou, Chalamet devorava a ideia de um amor perfeito, atirando-se nos braços de um orientando de seu pai.

Em "Suspiria" (2018), impecável remake que fez do cult lançado por Dario Argento em 1977, Guadagnino mostrava mulheres devorando almas, num ritual de bruxaria adequado à Guerra Fria. Na série "We Are Who We Are" (2020), ele mostrava jovens se refestelando no apetite voraz pela descoberta, alimentando-se de experiências e desilusões.

Agora, nessa adaptação do romance homônimo de Camille DeAngelis, roteirizada por David Kajganich, "devorar" significa comer carne de gente. Mas leia "canibalismo" como sendo um manifesto antropofágico. E poético.

Laureado no Festival de Veneza, em setembro, com o Prêmio de Melhor Direção e o troféu Marcello Mastroianni de Melhor Intérprete Revelação, conferido à interpretação algébrica da atriz Taylor Russell, "Até os Ossos" apresenta ao cinema uma nova raça de seres fantásticos: os Devoradores. Não confunda essa "espécie" com o Dr. Hannibal Lecter, o psicanalista vivido por Anthony Hopkins em "O Silêncio dos Inocentes" (1991) ou com o psicopata da série "Dahmer: Um Canibal Americano", lançada este ano pela Netflix.

Esses dois têm a compulsão de comer pessoas como reflexo de uma fratura perversa em sua psiquê. Os Devoradores de Guadagnino, entre eles a jovem Maren (Taylor) e o on the road Lee (Chalamet), são como vampiros: têm uma necessidade biológica de se alimentar de carne humana para sobreviverem. E têm uma série de habilidades inerentes a essa fome insaciável, como um olfato apurado.

O que Guadagnino propõe a partir dessa premissa da ordem do Sobrenatural é uma mistura de terror, filme de amor (daqueles de suspirar) e road movie. É um cruzamento beat de "Terra de Ninguém" ("Badlands", 1973), de Terrence Malick, com "Fome de Viver" ("The Hunger", 1983), de Tony Scott (1944-2012).

Do primeiro, o cineasta toma emprestado o espírito cartográfico de estudar uma América profunda (e falida), com um casal alienado das normas morais, não por rebeldia teen, mas por uma insatisfação essencial. De Scott, ele pega emprestado sofisticação e um existencialismo melancólico. Não por acaso, usa "Atmosphere", do Joy Division.

Em sua fotografia, assinada por Arseni Khachaturan (de "Beginning"), vemos o interior dos EUA num vazio pleno, num desolamento de cidade fantasma. Desse mundo desolado brota um monstro, Sully, um Devorador carente que Mark Rylance constrói nas raias do esplendor, a fim de nos lembrar que estamos, sim, diante de um thriller de horror. O horror da insaciabilidade. E ela uiva.